Neonazismo
O Brasil nos anos 30 e a ideologia germanista: um estudo de caso

René E. Gertz*


Historiador e cientista político, Ph.D em História pela Universidade Livre de Berlim, é professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Escreveu, entre outros, o livro "O Perigo Alemão". Atualmente coordena o Núcleo de Documentação sobre Integralismo.

Durante a maior parte do século XIX, a presença de negros e descendentes constituiu o tema central da discussão em tomo da identidade étnico-racial do Brasil. Entre os vários aspectos dessa discussão, estava a possibilidade de o país ficar definitivamente marcado por essa presença negra ou então experimentar um processo de "branqueamento". Esse branqueamento poderia tomar-se uma realidade, segundo muitos, se o Brasil trouxesse o maior número possível de imigrantes não-negros. Assim, mesmo que a discussão em tomo do papel e do futuro da população negra não cessasse, verificou-se, desde o final do século XIX, um importante debate em tomo da qualidade dos imigrantes com que se poderia contar. Entraram em pauta temas como adequação ao trabalho, ligação dos imigrados com seus países de origem, capacidade de assimilação e outros.

Nos anos 1930 o debate se acirrou em virtude de vários fatores, como o nacionalismo crescente, as pressões externas geradas pelas perseguições étnicas e religiosas que se espalharam pelo mundo, e que atingiram o Brasil na forma de demandas para abrigar parte desses perseguidos, por exemplo. Dentro desse contexto, os debates, muitas vezes, foram bastante confusos, pois o país se caracterizava pela multiplicidade étnica, racial, cultural e religiosa, e pela tentativa de criação de uma nação que fosse o resultado da fusão dos diversos elementos que compunham sua população, mas não se tinha muita clareza sobre como isso deveria acontecer. Quem eram os "verdadeiros" brasileiros, quem representava perigo para a constituição da nacionalidade, qual o modelo que deveria servir de inspiração?

O que se pretende apresentar neste texto é uma das situações que gerou muita controvérsia, frequentemente tida como clara, mas na verdade bastante confusa, no sul do Brasil, envolvendo germanismo, nazismo e integralismo. Para o senso comum, esses três elementos não constituíram nada mais do que três diferentes faces da mesma moeda. Uma análise mais detalhada, porém, mostra que haw, algumas distinções a serem feitas. (1)

Germanismo é a tradução da palavra alemã Deutschtum. A utilização dessa palavra não é inequívoca. Muitas vezes ela foi utilizada para designar simplesmente a população de origem alemã. Assim, em 1924 foi editado um volumoso livro sobre a história da imigração e da colonização alemã no Rio Grande do Sul, em comemoração ao centenário de seu início, e esse livro recebeu o título de Hundert Jahre Deutschtum in Rio Grande do Sul. Não seria de todo errado traduzir esse título por "Cem anos de [história] da população de origem alemã no Rio Grande do Sul". E nesse sentido o livro constitui um dos documentos mais significativos sobre a população de origem alemã no estado. Mas é claro que o título queria dizer também algo mais. Ele queria mostrar como durante 100 anos a cultura, a identidade e a etnia alemãs (a germanidade pleiteada pelo germanismo) se haviam preservado. Não há dúvida de que nesse sentido germanismo significa um programa e uma ideologia.

Sabemos que a ideologia do germanismo é muito anterior à formação do Estado alemão moderno na década de 1870. Mas essa ideologia assume proporções significativas no Brasil no último quartel do século XIX. Nesse momento as elites alemãs se deram conta da importância dos alemães emigrados (os "alemães do exterior") para o desenvolvimento económico alemão, pois poderiam tornarse importante mercado consumidor dos produtos da ascendente indústria alemã. Para isso era conveniente evitar que esses emigrados se diluíssem no meltingpot das sociedades para as quais emigravam. Para isso deveriam ser mantidos a língua, os costumes e a "pureza do sangue", isto é, deveriam ser evitados os casa-mentos inter-étnicos.

No decorrer do tempo o movimento germanista se expandiu no Brasil e criou uma série de conceitos peculiares. Quem defendia a manutenção da identidade étnico-racial como programa não poderia defendê-la só para si; deveria admitila - e até reivindicá-la - também para a população de qualquer outra origem, para poder justificar a sua própria. Nesse sentido, aparecia com frequência o termo Volkstum, que poderia ser traduzido por "etnia". Assim, havia no Brasil, além do Volkstum alemão, o Volkstum italiano, polonês etc. O vocabulário específico foi, porém, bem maior, estabelecendo-se, muitas vezes, debates fervorosos sobre o que significava e quais eram as relações entre Volksgemeinschaft (comunidade étnica), Staat (Estado), Vaterland (pátria), Deutschbrasilianer (teuto-brasileiro), Ausianddeutscher (alemão do exterior), Reichsdeutscher (alemão do Reich, isto é, cidadão do Império Alemão), Volksdeutscher (pessoa de etnia alemã, mas não cidadão do Império Alemão).

Características desse debate, nos anos 1930, foram várias pequenas brochuras editadas na época. Cabe citar uma de Franz Metzier, diretor de um jornal de orientação católica de Porto Alegre, Deutsches Volksblatt, sob o título Was ist Volkstum, was ist Volksgemeinschaft? (O que é etnia, o que é comunidade étnica?), e outra de Hans Raunegger, publicada pelo jornal Serra Post, de Ijuí, sob o título Volk una Staat (Povo e Estado). Para caracterizar a ideologia germanista, cito alguns trechos deste último livrinho: "O que é povo? Povo é a totalidade daqueles que se acham unidos por uma língua comum, uma mesma raça e uma mesma cultura. Essa união ultrapassa os limites estatais e confessionais". "O que é Estado? Estado pode ser comparado a uma casa construída pêlos cidadãos que nela habitam e sobre a qual possuem direitos de propriedade. Para garantir a ordem e a segurança de todos os moradores dessa casa, eles criam leis e instituem autoridades responsáveis pela execução das leis". "O teuto-brasileiro é um alemão completo -já que é integrante do povo alemão -, mas ele também, é brasileiro completo -já que, de acordo com a legislação brasileira, possui cidadania brasileira". "Comunidade étnica é um conceito ideal, sentimental, igual ao pertencimento a uma comunidade religiosa, enquanto a comunidade dos cidadãos constitui um conceito legal que possui um ordenamento prescrito pelo Estado e por suas leis". "Estado, povo e igreja são as comunidades a que pertence o cidadão. Do pertencimento a cada uma dessas instâncias decorrem deveres e direitos. Nenhuma dessas comunidades pode impor exigências ao indivíduo que o coloquem em conflito com as outras e nenhuma dessas três instâncias tem o direito à totalidade".

Desde longa data, a ideologia germanista era veiculada basicamente por instituições como associações esportivas e culturais, pela imprensa de língua alemã, por escolas e por igrejas. Certamente não se estará errando ao identificar o Sínodo Riograndense, a organização eclesiástica que congregava a maioria das comunidades luteranas de tradição alemã, como a instituição mais representativa do cultivo do germanismo. (2) A partir dos anos 1920, o pastor Hermann Dohms destacou-se cada vez mais como o grande líder e ideólogo dessa organização religiosa e, assim, posicionamentos emitidos por ele ou surgidos em torno dele são bem característicos desse germanismo luterano. Dohms escreveu em 1923: "Pessoalmente não tenho nenhum interesse em uma igreja evangélica no Brasil que não seja de fala alemã", pois ele identificava o Sínodo como uma Volkskirche, uma igreja étnica, e assim, nessa época, até se preocupava com que fazer com eventuais adesões de pessoas de outras etnias.

Mas a ideologia germanista-luterana foi mais bem elaborada, nos anos 1930, por dois discípulos de Dohms: Carlos Henrique Oberacker e Carlos Henrique Hunsche. Cabe destacar um posicionamento típico de Oberacker. Ao referir-se ao grande líder da população de origem alemã no Rio Grande do Sul no século XIX Kari von Koseritz, fez-lhe a seguinte crítica: "A fraqueza do liberalismo de Koseritz está fundamentada no fato de não ter reconhecido o significado de sangue e de raça. Por isso não foi capaz de defender com segurança a imprescindível pureza étnica". As consequências, segundo Oberacker, não se fizeram esperar: "Com seu casamento inter-étnico (3), parcialmente desculpável por sua pouca idade e seu isolamento em relação ao povo alemão, Koseritz demonstrou não ter reconhecido a importância do sangue. Nenhum outro exemplo, porém, é mais ilustrativo para os teuto-brasileiros. Uma de suas filhas ainda apresentou realizações acima da média, todos eles, porém, casaram novamente com luso-brasileiros e estão perdidos para a etnia alemã. E que importância têm todos os seus descendentes em conjunto para a pátria brasileira, se comparados com seu grande ancestral?"

Alguns setores da igreja católica, no entanto, também tiveram papel destacado na difusão do germanismo, mesmo que eventualmente com a valorização de alguma nuança diferente. O arcebispo de Porto Alegre, D. João Becker, era um fervoroso nacionalista brasileiro - xingado por isso pêlos germanistas como "renegado étnico". Mas Becker não representava a unanimidade do catolicismo de origem alemã. Pode-se dizer que os jesuítas constituíam o principal grupo dentro da Igreja Católica que defendia preceitos básicos da ideologia germanista. Ligada aos jesuítas, a família Metzier editava um dos principais jornais de língua alemã do Rio Grande do Sul, o citado Deutsches Volksblatt, cujo empenho a favor da preservação das particularidades étnico-raciais e culturais da população de origem alemã foi fervoroso no período que vai do final do século XIX até 1941, quando o jornal foi fechado no contexto da Segunda Guerra Mundial. De Franz Metzier, diretor do jornal na década de 1930, temos a seguinte linguagem figurativa sobre o germanismo: uma macieira só pode produzir maçãs, e isso não pode nem deve ser mudado. A beleza de um parque provém justamente da coexistência de várias espécies vegetais. Um jardineiro sábio cuidará para que cada espécie tenha as melhores condições de desenvolver-se, pois é disso que resultará a beleza do parque. Só um jardineiro insensato pensaria em enxertar copas de palmeiras em troncos de pinheiro. Estragaria a ambos, e com isso prejudicaria a beleza do parque multicolorido.

Muitos germanistas possivelmente leram aquela bibliografia brasileira da década de 1920/1930 que tentava explicar o Brasil como um país de sociedade amorfa ou "amebóide", isto é, um país em que a sociedade não estava estruturada, e que só poderia vir a constituir uma verdadeira nação se o Estado assumisse o papel de estruturador. Historiadores falam nesse caso de "ideologia de Estado". Outros ainda enxergavam na Igreja Católica e no catolicismo uma possível instituição e uma ideologia unificadora de um país grande e carente de integração. Os germanistas entravam nessa discussão por um outro viés. Partindo do mesmo diagnóstico da inexistência de uma verdadeira nação e da consequente falta de estruturação e integração do país, apontavam para a necessidade de descobrir-se elos constitutivos naturais da nacionalidade brasileira. Para eles, as únicas unidades ou "tijolos" naturais para construir uma nacionalidade no Brasil eram as diferentes etnias. Nesse sentido, a manutenção das etnias não constituía um empecilho para a construção da nação brasileira, mas, muito pelo contrário, era uma condição. O citado parque multicolorido de Metzier se enquadra nesse esquema de pensamento.

No decorrer do tempo, a ideologia germanista se difundiu dentro de uma série de instituições, na origem não necessariamente criadas dentro desse espírito. Assim, ligado tanto ao germanismo luterano quanto ao católico vieram a ter papel de destaque como guardiões da ideologia germanista as associações escolares e de professores evangélicos e católicos. As escolas vinham do início da colonização e as associações de professores foram fundadas em tomo da virada do século XIX para o XX. Associações esportivas e culturais, muito difundidas nas regiões de colonização alemã, constituíram outro esteio do germanismo, especialmente nas grandes cidades, quando as do interior, muitas vezes, não eram defensoras expressas da ideologia, constituindo-se sua atividade em simples lugares de diversão.

Quando o nazismo chegou ao poder na Alemanha, em 1933, o germanismo, sem dúvida, experimentou o que se poderia denominar um reavivamento, pois todo o movimento sofria, naquele momento, de alguma forma, com as consequências da derrota alemã na Primeira Guerra e a crise alemã dos anos 1920. O citado pastor Dohms escreveu um artigo pouco depois da tomada do poder pêlos nazistas na Alemanha. Nesse artigo lê-se, entre outras coisas: "Há agora 'mudança de rumo' na Alemanha? Nós o esperamos e nessa esperança prosseguimos o nosso trabalho". 'Todas as 'três potências da história universal (Jacob Burckhardt) foram atingidas pela mudança: Estado, Igreja, Etnia. O pensamento, o sentimento e a vontade, porém, provêm da Etnia, vivenciada não no seu explendor cultural, mas sobretudo em sua força criativa ('racial'). Por isso não se pode ver aqui um golpe de Estado, uma revolução no sentido de revolta de um grupo, nem uma reforma cristã, mas o 'rompimento de marcha' de um povo, dilacerado desde o século XVII por visões de mundo estreitas, que se dá conta do simples fato de que é povo e que não há outra saída da terrível situação em que o mundo e a própria culpa o colocaram, a não ser primeiramente e acima de tudo povo alemão".

A pergunta que, por isso, se impõe é como o germanismo se posicionou frente ao governo alemão e à atividade partidária nazista.

Pode-se dizer que os germanistas, quase sem exceção, manifestaram simpatia pelo nazismo como um movimento de germanismo puro ou autêntico. Um conhecido jornalista de Santa Catarina, Arthur Koehier, manifestou, em carta à Alemanha, sem recorrer a elocubrações teológico-filosóficas como as de Dohms, um sentimento que resume a posição dos germanistas em geral: "Em todos os companheiros aqui, à margem da floresta brasileira, existia um pouco de espírito hitierista.

Mas isso não significava automaticamente e sem ressalvas o endosso da atividade do Partido Nazista no Brasil. É sabido que até a decretação do Estado Novo, em 1937, o governo brasileiro não impôs nenhum empecilho a essa atuação partidária. Com isso a Seção do Exterior do Partido Nazista organizou núcleos pelo país. Pesquisas efetuadas nas últimas décadas indicam que esses núcleos congregaram pouco mais de 2.000 filiados, dos quais cerca de 500 no Rio Grande do Sul e um número semelhante em Santa Catarina, e os demais espalhados pelo restante do Brasil. Pêlos dados estatísticos sobre a imigração alemã para o Brasil nas três primeiras décadas do século XX, pode-se pressupor que viviam aqui mais de 100.000 cidadãos alemães. Durante a década de 1930 ocorreu uma significativa expansão do número de empresas alemãs no país, tendo então entrado um novo contingente de cidadãos diretamente ligados a essas empresas, e, com isso, de certa forma, ao Estado alemão. Cabe chamar a atenção ainda para a existência de pastores alemães que trabalhavam no Sínodo Riograndense e para o fato de uma não desprezível proximidade das organizações eclesiásticas luteranas da Alemanha com o regime hitierista.

Desses contingentes de cidadãos alemães que já viviam aqui, ou que vieram na década de 1930, saíram os filiados ao Partido Nazista no Brasil. Eles não representaram, porém, um contingente homogéneo. Diria que se pode dividi-los em dois grandes grupos: um deles era constituído por aqueles para quem aderir ao partido significou radicalizar o germanismo ou retomar ao germanismo autêntico. Exemplo típico desse grupo são os pastores luteranos. Um desses pastores, Erich Knãpper, formulou a seguinte frase, que parece típica desse posicionamento: "Todo companheiro étnico alemão que tem algum interesse na preservação e na salvação de sua etnia aqui no Brasil, todo aquele que ainda possui um restinho de amor pela etnia [deve] confessar-se a esta nova visão de mundo do nazismo e tomar-se nesse sentido um cruzado pelo reavivamento da alma da nossa etnia". Essa categoria de membros do partido destacava no nazismo sobretudo seu conteúdo cultural, no sentido de que se trataria menos de um partido político do que de um germanismo levado às últimas consequências. E nesse sentido deveria ser destacado apenas o lado étnico-cultual, pois o destaque excessivo da atividade política, num país como o Brasil, que possui uma longa tradição de nativismo contra imigrantes e descendentes, poderia antes prejudicar do que favorecer o germanismo. Um discípulo de Dohms, o citado Carlos Henrique Hunsche, formulou a seguinte crítica à atividade de muitos partidários: "o dirigente da juventude alemã [nazistal no Brasil, o camarada Sucht, do Rio de Janeiro, apresenta-se com o distintivo partidário no trabalho com rapazes e moças teutobrasileiros, que, afinal, são cidadãos brasileiros; ou o Dr. Neubert, de Porto Alegre, líder da juventude riograndense e da Liga de Moças Alemãs, aparece em uniforme para um evento na Sociedade Germânia, apresentando-se os rapazes e moças com uniforme igual ao da Juventude Hitierista e da Liga de Moças Alemãs aqui na Alemanha. Será que essa gente (todos alemães e há pouco tempo no Brasil) não vê a que perigos expõe nosso trabalho?"

Além do perigo para o cultivo da germanidade representado pela atuação ostensivamente política do segundo grupo de membros do Partido Nazista, uma diferença fundamental entre germanistas tradicionais e esses nazistas decorria da prática usual destes últimos de se julgarem os mais autênticos portadores no "novo espírito alemão" e, assim, tinham a pretensão de subjugar a seu comando todas as instituições de cultivo da germanidade e todas as associações esportivas, culturais e educacionais existentes no Brasil. Tomou-se conhecida a técnica empregada por eles de comparecer em número compacto às assembleias dessas associações - reuniões nas quais os sócios tradicionais não costumavam ser muito assíduos - e aprovar resoluções sobre a filiação dessas instituições a centrais localizadas na Alemanha, com que elas, evidentemente, sofreriam um processo de controle externo, a famosa Gleichschaltung (palavra que talvez pudesse ser traduzida por "enquadramento"). Procuravam destronar com isso as lideranças tradicionais. O resultado disso foi, via de regra, uma oposição cerrada aos membros do partido dentro das instituições germanistas.

A existência simultânea de germanismo e nazismo na década de 1930 pode ser caracterizada, em resumo, da seguinte maneira: o germanismo experimentou um reavivamento com o suposto reerguimento da "pátria-mãe" e manifestou, quase sem exceção, simpatias pelo regime na Alemanha. Aqueles membros do Partido Nazista que destacavam sobretudo a variável étnico-cultural do nazismo conviviam nas instituições germanistas, como, muitas vezes, tinham vivido antes da ascensão dos nazistas ao poder. Representantes típicos dessa ala do partido foram os pastores luteranos. Aqueles membros do partido que, no entanto, destacavam no nazismo sobretudo seu aspecto político, seu fator de poder, entravam normalmente em conflito com as instituições germanistas e com os germanistas. E por isso que na documentação produzida por nazistas no Brasil se encontram muito frequentemente referências ao fato de que em sua vida social se afastaram da "colónia alemã" e procuraram estabelecer uma convivência mais intensa com "círculos puramente brasileiros".

Um professor da "Escola Alemã de Joinville" - um germanista - escreveu nesse sentido o seguinte: "Os grupos locais do Partido Nazista que se formaram em Santa Catarina são quase sem exceção recusados, tanto pêlos alemães natos quanto pêlos teuto-brasileiros, em parte porque os líderes falharam, em parte por agirem sem tato". Do outro lado, esses nazistas "políticos" manifestavam-se de forma pejorativa em relação ao "indolente teuto-brasileiro, que não pode mais ser contado como integrante do povo alemão", e muitas vezes se afastavam da "colónia". "Tenho agora relações muito boas com círculos totalmente brasileiros; por diversos motivos me isolei quase por completo da colónia alemã local", escreveu um engenheiro alemão nazista chamado Herbert Werner Haase, do Rio Grande do Sul, para uma família amiga na Alemanha. "O bodegueiro alemão daqui... não presta para nada. Por isso me mantenho longe dessa confusão".

Para complicar o quadro, não podemos esquecer que na década de 1930 existiu ainda o integralismo. No senso comum o integralismo não foi nada mais do que o resultado da longa tradição germanista e um nazismo camuflado ou seu servil agente. Essa visão das coisas é, no mínimo, simplista. Na documentação alemã e nas publicações germanistas encontram-se intensas controvérsias sobre o íntegralismo. E, no seu conjunto, essas fontes apontam para mais momentos de distanciamento do que de aproximação com o movimento brasileiro, ao menos até 1937, quando todos eles gozavam de uma grande liberdade de atuação por parte do governo brasileiro. Em tese, poderia esperar-se que depois de proibidos e perseguidos pelo regime de Vargas se tivessem aproximado, mas a documentação mostra que mesmo nesse período persistem diferenças muito significativas.

Para compreender isso, é necessário recorrer a vários fatores. Citemos apenas dois: um, a grande política e, outro, a questão ideológica. Não há com deixar de levar em consideração a grande política. Assim, a nível de governo alemão uma aproximação com um partido fora do poder, como o era o Íntegralismo, poderia prejudicar seus grandes interesses económicos no Brasil, que pareciam melhor garantidos com o aprofundamento das relações com Getúlio Vargas. Há um bom número de estudos consistentes que mostram o crescente intercâmbio comercial entre Brasil e Alemanha. Ao relacionamento económico correspondeu uma equivalente aproximação política, que só vai turvar-se a partir de 1938, após a implantação do Estado Novo e o início da política de nacionalização do governo brasileiro. Mesmo que a ideologia tenha constituído um aspecto fundamental na política nazista, conjeturações racionais sobre perdas e ganhos independentes dos princípios doutrinários não estavam totalmente ausentes.

Mas, afora isso, o Íntegralismo representava uma ideologia que conflitava em muitos pontos com o germanismo, e assim o Íntegralismo, no mínimo, se tomava incompatível com aqueles nazistas que foram caracterizados como "germanistas radicais". Para que isso fique mais claro, é necessário tomar presentes alguns daqueles elementos da doutrina integralista que tratavam de aspectos étnico-raciais e religiosos. E amplamente conhecido o anti-semitismo do segundo homem da hierarquia integralista, Gustavo Barroso. Esse aspecto, sem dúvida, poderia constituir um ponto de aproximação com o nazismo - e certamente também constituiu. O anti-semitismo, porém, não estava presente no discurso de todos os líderes integralistas - ao menos em grau comparável ao de Barroso -, e com isso não representava um ponto central da doutrina. (4) Ganham, portanto, importância outros elementos. Como movimento profundamente ideológico, o Íntegralismo, naturalmente, formulou uma doutrina para explicar o Brasil. Nesse sentido, apontou a influência estrangeira como uma das maiores mazelas - influência económica, política, cultural. Nesse sentido, o Íntegralismo recuperou o Brasil-Colônia e o Brasil caboclo como elementos positivos na constituição da nacionalidade. Nesse contexto, bandeirantes e jesuítas transformam-se em importantes elementos na constituição da nacionalidade, pois eles se desvincularam, no período colonial, do Brasil litorâneo e deram origem a um país com identidade própria, à qual as regiões estrangeirizadas ainda não estavam integradas.

E é nessa perspectiva que o já citado germanista luterano Carlos Henrique Hunsche pode ser apontado como um crítico típico do integralismo, com críticas que serão endossadas pêlos nazistas próximos ao germanismo. Segundo ele, na ideologia e na prática do integralismo o conceito de "brasilidade" ocupa um lugar central. "No então, brasilidade não é nada menos que a exigência de moldar toda a vida brasileira de acordo com as leis da própria etnia", que, porém, não existe. Brasilidade, assim, se transforma em lusitanidade, e com isso "a vontade de 'abrasileirar' os imigrantes recém-chegados ao Brasil... não é outra coisa que o injustificado desejo de dominação da etnia lusitana". Uma decorrência lógica dessa concepção básica da teoria integralista seria a concretização do melting pot, e os indivíduos daquelas etnias que não se encontravam no Brasil no período colonial deveriam demonstrar sua lealdade abrindo mão de seu Volkstum (da sua etnia), "portanto, da língua e do sangue herdados".

Outra decorrência lógica dessa concepção de brasilidade, segundo o mesmo Hunsche, seria a de que o citado conceito de brasilidade possui claros traços católicos, e com isso os germanistas luteranos teriam um motivo adicional para temer o integralismo.

Poderia dizer-se que tudo isso constituiu uma cortina de fumaça para despistar do óbvio de que o integralismo era, de fato, o nazismo camuflado. Não há como discutir isso em abstraio. Verdade é que o integralismo, efetivamente, tentou "abrasileirar" os imigrantes na forma apontada pêlos críticos germanistas. Aprendiam a falar português, a cantar os hinos patrióticos brasileiros, e sobretudo em Santa Catarina, onde elegeram um considerável número de prefeitos nas eleições de 1936, passaram a dificultar a existência das escolas "alemãs".

De tudo isso podemos concluir que a questão étnico-racial no Brasil dos anos 1930 era muito complexa. Alguns dos principais movimentos e correntes de pensamento que nesses anos estiveram na linha de frente do debate apresentavam diferenças e distanciamentos entre si, e isso aponta para uma eventual caraterística mais permanente no Brasil, a de que a sua apreensão e compreensão é mais difícil do que em países em que esse tipo de pensamento e ação é mais homogéneo e unitário. Para concluir, poderia citar-se como exemplo dos problemas daí decorrentes o fato de que judeus alemães, fugidos do nazismo, muitas vezes enfrentaram problemas no Brasil pós-1938 porque falavam alemão.



Notas:

Texto da conferência proferida em 9 de agosto de 2000.

1. A exposição que segue baseia-se fundamentalmente em GERTZ, René. O fascismo no sul do Brasil: germanismo, nazismo, integralismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987; e em GERTZ, René. O perigo alemão. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1991.

2. Além do Sínodo Riograndense, existia o Sínodo Missouri, vinculado ao luteranismo norte-americano e que, oficialmente, renegava o germanismo.

3. Koseritz casou com a filha de um estancieiro de origem luso-brasileira de Pelotas.

4. Não se discute, naturalmente, o que aconteceria com o Íntegralismo no poder, pois estaríamos lidando com uma hipótese abstraia.


Editado electrónicamente por el Equipo Nizkor- Derechos Human Rights el 21feb02
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