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Hélgio Trindade*
Cientista político, ex-Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é Ph.D em Ciência Política, pós-doutorado em Ciência Política pela École Hautes Études em Sciences Socialies e em Política Comparada, pelo Centre de Recherches et Relations Intemationales de Paris. É professor titular de Ciência Política Comparada e Integração Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ensaísta e articulista, é autor de 26 livros, entre eles "Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30".
O debate em tomo da questão do fascismo na América Latina remonta à década de 30. O surgimento de "movimentos políticos" de tipo fascista em diversos países (especialmente no Brasil, Argentina, Chile, Bolívia e México), numa época em que o fascismo estava em plena ascendência na Europa, gerou um clima de radicalização ideológica nos meios intelectuais e políticos. Ainda que a análise dos contemporâneos e o antifascismo de esquerda sob a influência da estratégia "frontista" da Terceira Internacional não sejam os melhores indicadores para a identificação de um movimento fascista, parece que houve certas manifestações de fascismo na América Latina dos anos 30.
A questão que se coloca ao analista refere-se menos à presença na América Latina do que à extensão de suas manifestações. Certas pré-condições favoráveis certamente existiam, à época, para a eclosão de movimentos ou partidos de inspiração fascista. Desde o tipo de transição económica, social e política nos países mais "avançados", a importância da influência das ideologias europeias sobre as elites políticas e intelectuais, até a presença significativa de minorias étnicas, oriundas de várias correntes migratórias sucessivas de origem europeia (sobretudo de italianos e, em menor proporção, de alemães). Todos esses fatores favoreciam o mimetismo político-ideológico ou o surgimento de movimentos fascistas. Neste contexto, o problema a discutir no âmbito latinoamericano e, especialmente, no caso brasileiro, refere-se a dois aspectos principais: de um lado, como distingue entre as manifestações de mera imitação do fascismo europeu e, em consequência, limitadas em seu significado político interno, daquelas que, em função de seu caráter de massa, tomaram-se autênticos movimentos políticos nacionais? No caso em que se constate a presença de movimentos do segundo tipo, como explicar sua inserção política em sociedades tão diferentes das europeias que deram origem ao fascismo?
Com a implantação do Estado Novo de Vargas no Brasil, em 1937 e a eleição de Peron na Argentina, em 1946, a questão do fascismo, ao nível dos regimes políticos latino-americanos, atrairá a atenção dos especialistas. Se o regime varguista, personalizado na figura carismática do chefe da Nação, parecia tender mais para uma ditadura petemalista e modemizadora (apesar de possuir potencialidades fascistizantes, dissolveu um forte movimento fascista - o Integralismo - e caracterizou-se pela desmobilização política), a agressividade anti-oligárquica da liderança de Peron, associada a um alto grau de mobilização social e política, enquadrava-se melhor no estereótipo fascista. As características básicas dos dois regimes, agravadas pela longa suspeita de simpatia aos países do Eixo, durante e no apósguerra (o Brasil de Vargas mantém-se neutro até 1943 e a Argentina de Peron permanece assim até 1945, e acolherá ex-nazistas em seu território), eram uma tentação permanente ao estigma fascista. A questão relativa à presença de regimes fascistas na América Latina, aparentemente superada pela aplicação mais ampla do conceito de populismo - sobretudo a partir do momento em que os condicionantes das décadas de 30 e 40, tornaramse menos importantes -, longe de perder sua vigência, reforçou-se nas últimas décadas com o retomo dos novos regimes autoritários, de base militar, principalmente nos países do Cone sul (Argentina, Uruguai, sobretudo, Chile).
A mudança no padrão de intervenção militar no Brasil, no após-1964, rompendo com a tradição da arbitragem militar (1) através da tentativa de institucionalização (parcialmente exitosa) de um novo modelo político, assim como a rupturas da legalidade democrática em dois países de longa permanência de governos civil - Uruguai e Chile - recolocaram o problema do fascismo na América Latina. Ainda que o epíteto de colonial-fascismo tenha sido atribuído prematuramente por Hélio Jaguaribe, em 1967, ao primeiro governo militar no Brasil (2), a partir dos anos 70, um certo número de especialista criou novas expressões, tais como fascismo dependente, fascismo atípico, neofascismo, fascismo sui gene ris, para caracterizar os novos regimes latino-americanos. Esses autores prosseguiam, noutra perspectiva analítica, a tentativa de Lipset de explicar o peronismo e o varguismo como fascismo de esquerda (3).
Sem a preocupação de retomar a discussão em tomo da natureza do fascismo em geral e suas diferentes interpretações (4), este artigo buscará, numa primeira parte, discutir criticamente as principais interpretações sobre o fascismo na América latina. A partir das análises mais recentes que atribuem, nos anos 60, o conceito de fascismo aos novos regimes militares, pretendemos questionar este retorno ao fascismo. Esta discussão, porém, não pode ser dissociada da questão do fascismo na década de 30, se quisermos entender as origens da utilização do conceito: a polarização fascismo versus populismo do passado reaparece atualmente na nova dicotomia fascismo versus autoritarismo. A Segunda parte será destinada a aprofundar o caso brasileiro, onde a questão do fascismo se colocou provavelmente de forma mais dramática. Em 1937, quase se conjugaram no Brasil um movimento de massa de tipo fascista (Integralismo) com o novo regime (Estado Novo) instaurado por uma articulação entre Vargas e os militares, não tendo faltado inclusive uma marcha de 35 a 50 mil camisas-verdes em direção ao Palácio Presidencial, às vésperas do golpe de novembro. Daí a importância de discutir a natureza política desse movimento, bem como estabelecer o quadro explicativo de sua emergência, o que permitirá melhor compreender as condições e os limites de reprodução de um movimento ou regime fascista na América Latina.
l. O RETORNO AO FASCISMO?
O golpe militar no Brasil, em 1964, inaugura uma nova fase no padrão das intervenções militares na América Latina. Esta nova situação se reforça com o processo que se abre na Argentina, a partir da intervenção das Forças Armadas em 1966, consolidada em 1976, com o retomo dos militares ao poder.enfrentando a desagregação do peronismo. Dois novos golpes de Estado iriam encerrar o ciclo do novo tipo de intervenções militares no países do Cone Sul: o primeiro, no Uruguai, marcado por um processo gradual de militarização do Estado, após um longo período de governo civil, onde as Forças Armadas, descontroladas pelo ação dos Tupamaros, fecham o cerco no interior do aparelho de Estado, desde a declaração de guerra interna de abril de 1972, até o golpe definitivo, em junho de 1973, com a dissolução do Parlamento; o segundo, no Chile, sob o impacto da violência militar e do assassinato do Presidente da República, transformou-se, em 1973, no exemplo mais traumático do processo de aprofundamento e estabilização dos novos regimes militares na América Latina, reduzindo à apatia, pela força brutal da repressão, a mobilização política e social da Unidade Popular chilena. Nesta nova perspectiva, a justaposição cronológica do final do governo mais repressivo no Brasil (período Mediei, 1969-1973) com a eclosão dos golpes chilenos e uruguaio provoca um reexame das categoria analíticas utilizadas pêlos especialistas, muitos dos quais sofriam na própria carne os efeitos excludentes desses regimes.
A partir dessa nova conjuntura, altera-se o conteúdo semântico das explicações dos cientistas sociais sobre o processo em curso na América Latina, provocando um questionamento do novo conceito de autoritarismo em favor de um retomo ao conceito clássico de fascismo.
Este retorno ao velho conceito de fascismo, numa conjuntura de agravamento da crise política nos países do Cone Sul, onde a situação paradigmática deslocava-se do Brasil para o Chile, parecia indispensável para a compreensão da evolução dos modelos explicativos na América Latina. A corrente que se alimentou a partir da distinção clássica entre autoritarismo e fascismo desenvolvida por Juan Linz para o caso espanhol (5) inovara-se com a análise mais ambiciosa de Guillermo 0'Donnell que, na sua explicação dos processos argentino e brasileiro, sustentava a tese de que a necessidade de aprofundamento do modelo Capitalista e do controle dos setores populares impunha a implantação de Estados burocrâtico-autoritârios (6). Esta nova linha analítica buscava, através da critica às teorias da modernização e do desenvolvimento político que dominaram na década anterior, questionar o otimismo etnocêntrico das relações entre modernização industrial e democracia dos trabalhos de Lipset, Almond, Coleman, etc. (7) Com a surpreendente ascensão dos militares ao poder, as contribuições de Huntington, Dendix, Packenham, Whitaker e outros (8) indicam os limites dessas teorias, abrindo o caminho aos novos modelos explicativos do retrocesso autoritário que eclode, paradoxalmente, nos países economicamente mais modernizados. Nessa nova etapa, porém, a teorização de 0'Donnell parece insuficiente não somente para explicar os novos casos chileno e uruguaio, mas também para captar os perfis diferenciados da evolução das experiências argentina e brasileira. À luz dos limites do modelo do Estado burocrático-autoríïário, apesar de seu caráter indicutivelmente inovador, emergem, de um lado, novas análises centradas na hipótese do autoritarismo (9) , e, de outro, renasce das cinzas o conceito de fascismo. Essa rentrée da hipótese fascista, tão agressiva quanto inesperada, merece ser analisada.
a) O "FASCISMO-DEPENDENTE"
A vertente da interpretação fascista para a América Latina dos anos 70 nasce, em grande parte, sob a inspiração do debate que se abre ao enfoque marxista do fascismo europeu, a partir de 1970, com a contribuição de Poulantzas (10). Essa nova preocupação com o espectro do fascismo que ressurge com o golpe dos coronéis gregos em abril de 1967 e com as manifestações do neofascismo europeu estava presente simbolicamente na atmosfera intelectual, em 1974, no seminário sobre o fascismo de M. A. Macciocchi, em Vincennes: "Depois de 1968, as jovens gerações se aperceberam de que o fascismo não havia desaparecido com a guerra mundial e com a derrota militar. A burguesia capitalista investia novamente, pronta a tudo fazer para estancar o movimento que havia criado o maio de 1968 na França e o outono quente de 1969 na Itália. (...) Esta geração não viu surgir a revolução, mas a contra-revoluçâo, e o fascismo se apresentou a ela como um perigo do presente e não como um espectro do passado." (11)
Da mesma forma, o impacto da violência do golpe militar de Pinochet, no Chile, reavivou, sob o clima apaixonado da conjuntura, visões apocalípticas de um fascismo comandado pêlos Estados Unidos: "Foi o golpe do gorílismo chileno, em 11 de setembro de 1973, que nos pôs sobre a mesa o problema do fascismo. O de um fascismo que regressa com maior ferocidade. O certo entretanto é que o fascismo não retorna, nunca está ausente, nem foi derrotado, nem menos ainda foi vencido. Os vencidos foram seus primeiros manipuladores na Europa. (...) A diferença está que a sede do fascismo não se encontra mais em Berlim, mas em Washington." (12)
Um balanço crítico das principais contribuições do enfoque fascista mostra que, excluídas as análises baseadas numa conspiração fascista internacional manipulada pelo imperialismo americano, existem três variantes básicas:
primeiro, uma concepção que resiste à transposição do conceito de fascismo em termos de seu significado europeu original, que prefere referir-se, em termos mais amplos, a processos de fascistiwção, ou a fascismo como projeto
segundo, a que recupera o conceito original de fascismo, defendendo sua utilização como conceito explicativo para a América Latina dos anos 70, embora utilize sempre um qualificativo '.fascismo dependente, fascismo atípico etc.; finalmente, a terceira, que utiliza o conceito de fascismo latu senso, dissociando-o de qualquer condicionante das análises do fenómeno na Europa e fazendoo brotar da própria especificidade da dinâmica das formações sociais latinoamericanas.
Na primeira extremidade do continuam referente à questão do fascismo na América Latina, encontram-se as análises que apontam para a vocação fascitizante dos regimes autoritários, de base militar, na América Latina atual: tais como Cueva, que enfatiza os processo de impregnação fascista desses regimes; ou como Zavaleta Mercado, que prefere utilizar o conceito de ditaduras autoritárias com projeto fascista. Ambos os autores, representativos dessa tendência de um fascismo potencial, embora reconhecendo as especificidades do fascismo europeu dos anos 30, convergem na visão comum de que a dinâmica da fascistiwção está em curso na América Latina.
Num primeiro artigo, Cueva admite que a "América latina vem sendo vítima de um processo de fascistização, com tal dose de terror e barbárie, que se diferencia pouco do fenómeno análogo ocorrido nos países mais adiantados". Os dois casos principais considerados pelo autor são o do Brasil e o do Chile. O primeiro como exemplo de dominação militar-tecnocrática, com indiscutíveis traços fascistóides e inequivocamente ao serviço do império', o segundo como produto da reaçào do capital monopolista diante do "avanço da classe operária chilena que, na fase de fascistização anterior ao golpe, aplicou uma linha de massas, mobilizando amplos setores da pequena burguesia e das camadas médias." (13)
Num segundo artigo, procura aprofundar as condições em que os processos de fascistiwção que se espalham pela América Latina possam dar origem a regimes fascistas. Defende a tese de que nem o partido de massas, nem o apoio pequeno-burguês ou a ideologia nacionalista-chauvinista são traços essenciais constitutivos da experiência fascista europeia, mas simples meios destinados a esconder o principal. O essencial no fascismo é sua natureza de classe e a mudança qualificativa que impõe às forças do Estado. E acrescenta que o fato dos países latino-americanos não serem imperialistas não exclui também a possibilidade de fascistização em função da penetração profunda do capital transnacional. A decorrência lógica de sua argumentação é de que, teoricamente, o desmantelamento do Estado democrático-burguês e sua substituição por uma forma fascista não têm por que, imediatamente, revestir-se das mesmas modalidades concretas que teve na Europa. Assim sugere que duas características estarão ausente dessa nova forma de fascismo: de um lado, sua "impossibilidade de conseguir uma base de apoio popular"; de outro, sua íí impossibilidade de implantar uma política nacionalista". (14)
Por sua vez, a análise de Zavaleta Mercado, embora também numa perspectiva marxista ortodoxa, procura vincular o conceito de fascismo aos condicionantes históricos europeus. Propõe uma tríplice distinção na configuração do fenómeno fascista: ao lado das concepções tradicionais ao fascismo como movimento de massas e como estrutura do poder, acrescenta uma terceira: o fascismo como projeto ou proposição social. Seu argumento é que, nas ditaduras atuais na América Latina, "se configura uma situação em que o projeto dos que detêm o aparato do Estado não se fundamenta num movimento de massas e, por conseguinte, não engendrou uma estrutura fascista de poder", porque a "questão nacional não está resolvida em função da "presença imperialista". Embora o bloqueio dos movimentos de massa não seja provocado pela mesma combinação de fatores económicos nas duas análises (Cueva considera que as desigualdades provocadas pêlos modelos económicos internos e a crise do capitalismo mundial constituem a barreira estrutural da mobilização), (15) a hipótese de Zavaleta Mercado sobre o fascismo potencial é de que "todos os elementos de juíw disponíveis permitem fazer a previsão de que a região viverá crises estatais de amplo alcance" podendo dar lugar a "crises nacionais generalizadas" ou, até mesmo, a "situações revolucionárias". A impossibilidade dos detentores do Estado em definir "a direção das determinações da sociedade civil" que são, na realidade, "massas não-mediadas" tende a originar este tipo de situação. (16)
O segundo tipo de análise corresponde ao núcleo do nosso problema, pois estabelece um novo paradigma explicativo para os regimes latino-americanos sob controle militar, incorporando explicitamente o conceito de fascismo. Theotonio dos Santos é provavelmente o representante mais importante dessa corrente e o que procurou melhor fundamentar o conceito de fascismo-dependente. Sua análise parte da distinção entre movimento e Estado fascistas, onde ele admite a possibilidade de um "Estado fascista que não foi gerado por um movimento fascista, mas por uma ocupação ou golpe militar" e, no sentido inverso, "a ascensão ao poder de um movimento fascista" que não consiga transformar-se em Estado fascista, senão "em formas parciais" do mesmo. Baseando-se na experiência fascista europeia, mostra que, enquanto o movimento fascista tem base pequeno-burguesa e uma ideologia política confusa, o Estado fascista é, na realidade, um pacto entre o movimento e o apoio dos grandes capitalistas, ainda que com uma base social distinta. A lógica de sua argumentação leva à consequência de que um regime fascista não é "uma aplicação à 'outrance) dos ideais confusos e demagógicos do movimento que lhe dá origem e não obedece necessariamente a um padrão rígido" e que, em consequência, "'os regimes concretos' são o resultado da combinação entre esses 'ideais e as condições objetivas'" (17)
Aplicando sua análise do fascismo em geral à realidade latino-americana, Theotonio dos Santos rejeita o epíteto de fascismo aos regimes de Peron e Vargas Cãs formas corporativas às quais tendia o Estado latino-americano refletiam, no contexto dos anos 30, um ideal líberador e não reacíonârio) e sustenta a tese de que os regimes atuais suo fascistas dependentes. A razão fundamental é que não somente os novos regimes militares se posicionam contra os herdeiros do populismo anterior, mas resultam do fracasso da experiência populista e da aliança de classes sob a hegemonia da burguesia nacional que lhe deu origem. O modelo do fascismo dependente se constrói articulando outro complexo de fatores: "A doutrina da segurança nacional foi a base ideológica que permitiu unificar politicamente a maioria militar. Seu conteúdo fascista, segundo o autor, é pouco similar ao clássico, mas é muito claro: a "ideologia substitui afigura do chefe por uma elite tecnocrática militar e civil, a do par- tido pelo aparato burocrático nacional militar". Esses traços, porém, implicam algumas; diferenças com relação ao modelo clássico: primeiro, trata-se de um Estado imposto de cima para baixo, que fortalece mais o capital internacional do que o nacional e que optou por uma repressão de elite ao invés de mobilizar as bases; segundo, constata-se uma certa autonomia ente o movimento fascista relativamente débil e o Estado fascista sob o controle da elite empresarial, militar e tecnocrática; terceiro, as contradições internas desses regimes fascistas viabilizam a sobrevivência política do movimento popular; e, finalmente, o regime se sustenta mais pela apatia política dos setores médios do que pela busca de apoio ativo para sua legitimação. (18)
Outra análise típica dessa segunda vertente é a desenvolvida por Cassigoli, que distingue dois tipos de fascismo: de um lado, o que corresponde ao padrão europeu dos anos 30 que é o fascismo típico', de outro, o fascismo latino-americano que o autor prefere denominar de fascismo atípico. Sua análise não aprofunda as especificidades internas dos regimes latino-americanos, mas procura estabelecer um paralelo entre os condicionantes históricos aos dois modelos: o primeiro tipo é um "fenómeno político, fundamentalmente europeu, inerente à fase de desenvolvimento da acumulação capitalista que Lênin denominou imperialismo" e se caracteriza por ser "antiproletário, antisocialista, antibolchevique, antiinternacionalista e verbalmente anticapitalista"\ o segundo tipo, em pleno desenvolvimento na América Latina, apesar de possuir semelhanças formais com o fascismo típico, surge noutro contexto numa etapa da internacionalização do capital e da expansão de empresas multinacionais e que
tem como ideologia "a defesa do mundo livre, da cultura ocidental, o hemisfério, isto é, o sistema capitalista mundial." (19)
A terceira posição pode ser ilustrada através de um artigo de Marcos Kaplan que se propõe responder à seguinte questão: em que condições "aparece e tende a desenvolver-se uma forma suí generis de 'fascismo latino-amerícano'?". O autor, após uma análise estrutural da evolução das sociedades latino-americanas desde a década de 30, conclui que "desde a abertura mesma do processo de mudança que se delineia a partir de 30... vai se produzindo o declínio relativo, a decomposição mais menos rápido das estruturas e condições socio-econômicas que deram raízes, bases e sentido à oligarquia, à sua dominação e hegemonia, e ao Estado tradicional". A brecha do fascismo latino-americano se encontraria na "crise da dominação oligárquica", como tentativa de superar os experimentos do passado ("democrático-liberais", de "centro-esquerda", desenvolvimentistas, nacional-populistas, banapartistas" etc.) que falharam : "a emergência do fascismo encontra sua chave na contradição fundamental, de um lado, entre as exigências do modelo de crescimento utilizado e do tipo de economia e de sociedade que se pretende conservar e expandir; e, de outro, nas características e efeitos da crise de hegemonia e da situação de frequente instabilidade política" (20)
A etapa seguinte da análise de Kaplan é estabelecer os traços básicos do fascismo sui generis. Abstraindo suas categorias de qualquer referência do perfil histórico do fascismo europeu, propõe um conjunto de características que configurariam o seu modelo fascista. A elite oligárquica e seus representantes políticos aperfeiçoaram os mecanismos que, na luta pelo poder, configuram as características essenciais do novo regime fascista: "consolidação da própria elite oligárquica e seu sistema de aliança; reforço do intervencionismo estatal e a redefinição de seu uso; ideologia desenvolvimentista; utilização específica da ciência e da tecnologia e cooptação de certos setores da tecnoburocracia; reorientação do sistema educacional; recurso crescente às formas simbólicas de poder; militarização do poder e universalização da coerção, e construção de uma nova ordem política.) (21)
Na sua ótica analítica, a elite oligárquica em crise de dominação reforça e organiza um sistema de alianças que permite concentrar maior poder. Esta conversão adaptatíva da oligarquia, integrada por representantes do grande capital, se viabiliza pela aliança com as corporações multinacionais da potência hegemónica e, a partir deste pacto básico, estende novas alianças com as Forças Armadas, e com certos setores da intelectualidade tecnoburocrâtica e profissional da classe média, inclusive da burocracia sindical e da aristocracia operária. Em consequência do novo sistema de alianças, se produz uma "reestruturação e reorientação do Estado" adaptando-o aos interesses da elite oligârquica e de seus aliados internos e externos. Com bases nessas premissas, o ré' gime fascista e seu Estado operam através de um modelo ideológico ("a ideologia desenvolvimentista") ; do recurso de um setor da tecnoburocracia ("a elite política e a tecnoburocracia do fascismo postulam que os grande problemas são de natureza económica e tecnocientífica e não social, política e ideológica"); da organização do sistema educativo ("transmissão de conhecimentos práticos, operacionais e ideologicamente neutros" e "cultura interdisciplinar para os membros dos grupos hegemónicos e da classe dominante"); e da "utilização combinada de formas simbólicas e repressivas de poder", kaplan termina proclamando que " o fascismo chegou à América Latina" e conclui sua análise com uma frase dogmática e ameaçadora: o fascismo "se instalou e pretende permanecer para sempre. Por sua natureza e por seus resultados, o fascismo aspira a eternidade.." (22)
b) O NEOFASCISMO EM QUESTÃO
Dois tipos de crítica, inspiradas também numa abordagem marxista, permitem desqualificar, porém, a tese do fascismo na explicação dos novos padrões de dominação militar na América Latina. A primeira, de Zemelman que, a partir de uma discussão mais geral sobre os traços essenciais do fascismo, analisa especificamente o caso limite do regime militar, numa sociedade mobilizada pelo socialismo, que é o exemplo chileno de Pinochet. A Segunda, de Boron, que consegue, de uma forma mais sistemática, refutar a hipótese do "fascismo latino-americano apoiando-se na análise comparativa do fascismo europeu.
Semelman postula, ajusto título, que negar ou afirmar a existência de regimes fascistas na América Latina, implica encontrar 'previamente os traços que constituem sua essência' e propõe-se a definir os principais elementos teóricos do fascismo, a partir da organização do regime, sua base social e sua dinâmica política. Constituindo-se o fascismo na resposta da burguesia à sua própria impotência, a organização do Estado fascista tem como traço básico sua unidade monolítica que exige submissão política das massas e da própria burguesia, permitindo, pela aparente abdicação desta, desvincular o aparato do Estado de interesses particulares de classe. Outro componente do fascismo, em termos de base social e função histórica, é a sua configuração como o movimento de massas mais extremamente antiliberal que, sob o manto do Estado corporativo, consegue impulsionar a burguesia a impor a ditadura dos grandes interesses monopolistas e dos grandes proprietários agrícolas. Finalmente, na dinâmica de sua evolução, o fascismo se estrutura, num primeiro tempo, através de uma ampla mobilização de massas muito heterogénea que atinge um certo grau de independência com relação à classe dominante para, num segundo momento, articular-se com a grande burguesia. (23)
Na questão ao fascismo chileno, a posição de Zemelman se distancia das análises anteriores. No Chile não se organizou um movimento de massas para legitimar a nova dominação, nem se estruturou o partido que se constitui no centro supremo das decisões, função esta desempenhada, exclusivamente, pelas Forças Armadas. Além disso, os militares deslocaram do poder a classe política tradicional e desenvolveram uma intensa crítica aos próprios partidos burgueses. Embora tenham se reforçado os aspectos hierárquicos aumentando o poder personalizado do Chefe de Estado, a política económica se orienta em favor do grande capital aliado aos interesses transnacionais. Finalmente, em nenhum momento recorreu o sistema ãfatores carismáticos ou de demagogia socialista para mobilizar f orças pequeno-burgue sãs. Segundo o autor, a ausência, no processo histórico chileno pré-golpe militar, de uma organização ("Estado Maior") reconhecida pela burguesia e a inexistência de um partido de massas com orientação fascista, que poderia ter sido o PDC controlado por Frei, facilitariam o confronto das Forças Armadas com o movimento popular que, deslocando os partidos burgueses do poder, tomou-se a nova classe política. Zemelman conclui que, não tendo se processado no Chile as etapas típicas dos processos de fascistização (desde a primeira etapa popular até uma etapa militar totalitária e oligárquica), quaisquer que sejam as alternativas de evolução do regime, sua estabilidade repousa em seu caráter estamental-autoritário (24), isto é, na transformação dos militares em nova classe política possuidora de autonomia com relação a cada uma das frações burguesas.
A crítica mais radical à utilização do conceito de fascismo nos regimes atuais da América Latina é de Boron que, em seu artigo O fascismo como categoria histórica, parte de uma questão fundamental: qual a funcionalidade analítica do conceito de fascismo para melhor diagnosticar a natureza dos regimes políticos da região? "A esquerda latino-americana", responde o autor, "já cometeu demasiados erros no passado para reincidir, uma vez mais, numa caracterização errónea do inimigo de classe..." e acrescenta: "Não é recorrendo à denúncia ideológica, ou palavras de ordem que foram talvez justas e correias em outras épocas e lugares, que se 'iluminarão os traços' distintivos dos governos repressivos na América Latina." (25)
Boron, apoiando-se numa definição marxista-gramsciana de fascismo, critica o uso generalizado do conceito de processo de fascistizaçâo na América Latina que, a partir de uma caraterização formal de fascismo, acaba incorporando na ampla latitude do termo até as ditaduras de Somoza, Trujillo, Stroessner e Duvaher sob a denomização de fascismo primário. Situando a experiência fascista no "período da maturação e crise da fase clássica do imperialismo", onde "a burguesia monopolista nacional emergiu como fraçâo predominante da economia" e "a acumulação capitalista requeria a busca e controle de mercados exteriores", mostra como o Estado fascista "se edificou sobre os escombros de uma frustada ofensiva revolucionária da classe operária e sobre os ombros de uma maciça mobilização da pequena burguesia", gerando uma ideologia que, apesar de "amálgama contraditório, representou uma tentativa de substituição da velha ideologia liberal." (26)
A refutação proposta por Boron ao fascismo latino-americano se baseia, essencialmente, nas diferenças entre as duas conjunturas históricas. As novas formas de autoritarismo, de base militar, que se manifestam na América Latina dos anos 60 e 70, situam-se, em primeiro lugar, em uma fase distinta do capitalismo monopolista: enquanto a burguesia nacional europeia era ao mesmo tempo hegemónica, monopolista e imperialista, nas formações econômico-sociais da periferia "o processo de internacionalização dos mercados internos (...) soluciona o problema da realização do capital de uma forma distinta da que haviam tentado as burguesias 'em atraso' da Itália e Alemanha". Em segundo lugar, "a composição do bloco dominante " sofreu mudanças significativas com "a ascensão à posição hegemónica da burguesia monopolista internacional". Trata-se de um intermezzo pós-populista que colocou em crise as instituições liberal-burguesas com o objetivo de redefinir um novo sistema de alianças, onde os representantes do grande capital transnacional asseguram seu predomínio associando sua hegemonia afrações das burguesias nacionais e acertos setores das camadas médias que possam a beneficiar-se de um novo padrão de acumulação capitalista. Em terceiro lugar insiste também na diferença com os fascismos europeus pela ausência de uma base de massas que sirva de apoio a tais regimes e de uma ideologia totalitária. Ainda que as experiências políticas de Goulart no Brasil e de Allende no Chile tenham provocado algumas mobilizações dos setores médios de tipo fascistóide, os regimes militares atuais aborrecem as massas, inclusive as de caráter pequeno-burguês, que poderiam mobilizar para ampliar a base de sustentação de seus governos. Considera, inclusive, que na fase atual do capitalismo monopolista, essencialmente na periferia, 'não há fundamento económico' que possa estabelecer uma ponte sólida entre burguesia monopolista e as classes médias. O último elemento distintivo encontra-se ao nível da organização do aparelho de Estado: nas ditaduras militares "não houve uma ré estruturação comparável à que teve lugar nas experiências do fascismo clássico". (27)
O aspecto mais interessante de sua análise ao nível político aparece, porém, quando desenvolve o tema da militarização do Estado e sustenta que, diferentemente das formas tradicionais de intervenção militar ( o "pronunciamento" como obra de um caudilho militar), atualmente é 'apropria instituição castrense em sua totalidadef que ocupa os aparatos do Estado, projetando sua própria estrutura hierárquica de poder sobre o cenário da organização estatal. Nesta linha analítica, Boron avança a hipótese sobre a nova estrutura de poder:
o surgimento das Forças Armadas como partido orgânico da grande burguesia monopolista, isto é, a própria instituição militar aparece como o partido da ordem num momento em que entram em crise as diversas fórmulas populistas com as quais se pretendeu resolver a crise do Estado oligárquico liberal. E sua conclusão é inteiramente pertinente, a partir de seu enfoque analítico:
'O Estado militar' é a alternativa histórica ao fascismo, a solução atual que gera a nova fase do desenvolvimento capitalista na periferia. (28)
Esse argumento do partido militar foi reelaborado para o caso brasileiro por Rouquié e, mais recentemente, aplicado ao conjunto da América Latina: "As Forças Armadas podem ser forças políticas que preenchem 'por outros meios' as mesmas funções elementares que os partidos, e sobretudo, que conhecem em seu seio, como os partidos, mas segundo uma outra lógica, os processo de deliberação, de tomada de decisão, e, mesmo, de agregação e articulação de interesses sociais" (29) Em seu mais recente trabalho sobre "UÉtat militaire en Amérique Latino" não somente generaliza, numa perspectiva comparativa, o conceito de "parti militaire''' e especula sobre o futuro do Estado militar, como rejeita também a tese ao fascismo latino-americano. Considera que estes regimes sem partido único num aparelho mobilizador não têm uma base de massa e nem a procuram ter. Eles não politizam, mas despolitizam os cidadãos, eles •não doutrinam os trabalhadores, eles os incitam ao retomo ao privado. Após analisar os casos uruguaio e chileno, onde conclui que estes Estados militares tomaram como objetivo suprimir a política e não fundar uma nova ordem política, Rouquié sintetiza seu julgamento sobre a questão: "Mais que definir a natureza desses regimes, seria necessário falar das funções que neles assumem os militares. Face às crises a que nós temos assistido, eles representam, de alguma maneira, uma 'hegemonia de substituição'. (...) O Estado aparelho substitui o Estado-relação de forças sociais. O que não significa que os militares estão acima das classes ou que eles são o instrumento da burguesia, mas que eles podem agir segundo as duas modalidades, não deforma alternativa, mas simultânea." (30)
2. O FASCISMO NA ÉPOCA CLÁSSICA
A questão do fascismo é, na realidade, uma velha controvérsia na América Latina sempre ao sabor dos modismos europeus. Desde a organização do APRA de Haya de Ia Torre no Peru em 1924 e, sobretudo, com os governos de Vargas no Brasil e de Peron na Argentina, o conceito de fascismo incorporouse à história política latinoamericana. No início, a pobreza da análise política, que navegava entre o ensaísmo jornalístico e o formalismo jurídico, prestavase para as analogias fáceis. A importância do fenómeno fascista na Europa da década dos 30, a polarização da Segunda Guerra entre países democráticos versus fascistas e, no após-guerra, a ênfase atribuída pela ciência política americana na elaboração do conceito de totalitarismo (abrangendo os Estados fascistas e stanilista) foram fortes estímulos ao uso generalizado do qualificativo de fascista a movimentos e regimes políticos autoritários fora da Europa. Este conjunto de fatores explica, em grande parte, por que o fascismo tomou-se a "bele moire" da linguagem política dos militantes, jornalistas e ensaístas políticos latino-americanos. O fascismo dos antifascistas, seja da esquerda socialista ou comunista, seja da direita conservadora ou liberal, incorporou-se consensualmente tanto na imaginação política dos teóricos e doutrinadores, quanto na ação política dos partidários. Mais tarde, com o desenvolvimento das Ciências Sociais na América Latina, as análises enriqueceram-se com outras a- bordagens e novos conceitos foram introduzidos na análise política. Esta nova linha de análise introduzirá, para os casos de Peron e Vargas, os conceitos de populísmo" de Germano, Di Tella, Weffort e Ianni (31) ou de fascismo de esquerda ou proletário de Lipset. Da mesma forma, nos anos 70 recoloca-se na ordem do dia a questão da natureza fascista dos movimentos autoritários dos anos 30, a partir da discussão em tomo da Ação Integralista Brasileira, fundada por Plínio Salgado em 1932.
A questão do fascismo na América Latina sempre esteve mais associada ao caso argentino do que ao brasileiro. A ascensão de Peron à Secretaria do Trabalho, em 1943, provocou um processo de mobilização popular e de reorganização sindical importante, gerando uma discussão mais ampla sobre a especificidade do novo regime. Ao contrário, o Estado Novo de Vargas, mesmo se ele editou uma importante legislação trabalhista de inspiração fascista, era menos acusado de fascismo porque, além de ser um regime desmobilizador, dissolveu o Integralismo e declarou guerra aos países do Eixo em 1943. Este estigma fascista do regime argentino difundiu-se através da imprensa americana e europeia quando, em 1946, em plena sucessão presidencial da Argentina, os Estados Unidos divulgam o famoso "Livro Azul" denunciando as ligações entre o regime de Peron e as potências do Eixo. O documento denunciava que o capital alemão, os métodos de gestão alemães, o militarismo alemão e a ideologia fascista alemã exerciam uma influência profunda e duradoura na Argentina. Embora reconhecendo que o fascismo argentino não fosse um simples reflexo dos fascismos italiano e alemão, afirmava que ele se implantara no país e se desenvolvera segundo princípios originais. Um aspecto central da denúncia era que o totalitarismo argentino tomou-se um aliado das potências do Eixo e decidiu copiar os ideais e as práticas fascistas. Pretendendo com sua denúncia influir nas eleições presidenciais, o texto concluí que, ainda em 1946, o peronismo, "seu exército, sua polícia e sua administração estão sob o controle de pessoas favoráveis ao Eixo e que apesar de mudanças superficiais decididas por rabões táticas, os governos sucessivos mantiveram uma política de repressão, cerceadora e cruel, que caracteriza os regimes totalitários." (32) O "Livro Azul", publicado a conselho do embaixador Braden, teve um duplo efeito político: "reforçar a linguagem antiimperialista de Peron, com o famoso slogan "Ou Braden ou Peron", e difundir no após-guerra a imagem de um peronismo fascista.
a) FASCISMO E POPULISMO
Esse tipo de análise, profundamente marcada pelo ambiente antifascista do após-guerra e por inconfessáveis interesses económicos e geopolíticos americanos, embora não esclareça muito sobre a questão do fascismo na América Latina, teve, sem dúvida, um efeito importante na época, no contexto do confronto democracia versus totalitarismo. Mesmo que Péron tenha permanecido no poder até 1955, a marca fascista de seu governo permaneceu como um elemento de suspeita permanente. Somente a partir da década de 50, com estudos académicos sérios, que a questão do peronismo começou a ser encarada em outros termos, com as análises mais conhecidas de Germani e Lipset. Enquanto o primeiro, enfatizando as diferenças entre tipos de mobilização social na Itália e Argentina, denomina o peronismo de nacional-populismo, introduzindo na análise desses regimes políticos a dimensão populista, o segundo prefere utilizar-se de um fascismo que, em função da variação em sua base social, desloca-se no continuum esquerda-direita, definindo o peronismo e o varguismo como fascismos de esquerda.
A análise de Germani sobre o peronismo, embora tributária teoricamente da sociologia as modernização, teve o mérito de inserir o fenómeno peronista num contexto explicativo mais amplo. Como ressalta De Felice: "Em lugar de um discurso sobre as classes médias, ele desenvolveu um, mais geral e compreensivo, sobre a mobilidade e integração sociais" (33) A partir de sua contribuição, desenvolve-se na Argentina toda uma linha de pesquisas preocupada com a relação entre o movimento operário e o peronismo e com a problemática da sociedade de massas. (34) A hipótese central de Germani na caracterização diferencial entre fascismo e peronismo apoia-se na distinção entre mobilização primária (que ocorre numa sociedade tradicional) ou secundária (típica de uma sociedade modernizada): o fascismo nasceu da conjugação simultânea de uma mobilização primária e secundária, enquanto que o peronismo da mobilização primária e a classe mobilizada foi a operária. O fascismo italiano se explicaria, na abordagem do autor, pelo fato de que até a Primeira Guerra Mundial a mobilização primária encontrou canais de expressão aceitos ou tolerados e que, apesar da aceleração do ritmo desta mobilização no após-guerra, a classe operária não consegue tomar o poder porque não encontra uma elite disponível. Daí o deslocamento para a violência fascista destas massas em disponibilidade política associando-se à mobilização das classes médias (que, com a guerra, sofrem um processo de proletarização crescente) na eclosão do primo fascismo. O peronismo, ao contrário, era um movimento 'nacional-populaf que tinha numerosos aspectos totalitários, mas "na realidade, ele não era totalmente diferente do movimento liberal-popular - o partido radical -, que havia dado ex- pressão política ao primeiro estágio da mobilização primária. (35)
Trabalhos posteriores de Di Tella, Portantiero e Murmis aprofundam as relações entre peronismo e classe operária. Retomando, em grandes linhas, a interpretação de Germani na caracterização das diferenças sociológicas entre a situação europeia e a latino-americana: ainda que seja inegável que (o peronismo) tenha elementos ideológicos do fascismo, Di Tella afirma que não se pode identificar ambos os fenómenos, porque são distintas suas característica sociais. A base de massas do fascismo foi constituída pelas baixas classes médias, enquanto a do peronismo foi a classe operária. O fascismo, acrescenta o autor, não foi temido ou antagonizado pelas classes altas na mesma proporção em que foi o peronismo. Estas diferenças sociológicas não impedem que Di Tella reconheça, nas origens do peronismo, maiores semelhanças entre os dois movimentos em função do tipo de elites que os iniciaram: tratava-se, na Argentina, segundo o autor, de grupos de ideologia 'nacionalista', germanófilos durante a guerra, ligados a setores clericais, militares admiradores das proezas de Hitler e exegetas do Estado corporativo mussoliniano. A esta nova estruturação do poder de tipo bonapartista, o autor incorpora, porém, uma qualificação na natureza do apoio das massas: o peronismo conta menos com uma classe operária organizada, consciente politicamente, do que com uma forma de "espontaneísmo operário", que se caracteriza por "um forte antagonismo com relação às classes altas (...) e uma atraçâo pela violência que está muito distante do que poderia chamar-se uma consciência política racionalmente estruturada" (36)
Esta caracterização da base operária do peronismo não tem sido aceita por todos os analistas. A essa massa operária, com escassa perspectiva social e que se deixa facilmente manipular por lideranças sindicais instáveis e pela demagogia política, se opõe a concepção de Portantiero e Murmis de que na origem do peronismo se encontra um sindicalismo unificado. Segundo os autores, duas ideias estão interligadas em outras análises: de um lado, a imagem de um processo de manipulação de massas operárias por uma elite alheia à classe, e, ao mesmo tempo, um vazio de organização proletária autónoma; de outro, a ideia de que o apoio de massas seria função da inexistência (ou existência pouco significativa) de uma organização sindical prévia.... Portantiero e Murmis defendem a "importância que o sindicalismo organizado adquire durante o processo de gestação " do peronismo. A análise conduz à conclusão de que "no processo de génese do peronismo tiveram intensa participação dirigentes e organizações sindicais velhas, que chegaram a ser fundamentais ao nível dos sindicato e da Confederação e Geral do Trabalho e muito importantes no Partido Laborista" (37) Conclusão a que se opõe Germani em artigo publicado em 1973 : "Evidentemente que não se pode falar de condução sindical como se tratasse de um bloco monolítico. Sua divisão foi profunda antes, durante e depois da ascensão, governo e queda do peronismo. Dada a grande restrição de opções - do estado e das massas -, os dirigentes sindicais adotaram uma ampla gama de atitudes distintas: desde a decidida oposição ilegal até a colaboração." Germani considera que a compreensão desse processo exige a consideração de diferentes níveis: "No nível de estrutura ' socioeconômica' se pode estudar como expressão do desenvolvimento e da forma particular do capitalismo, e da etapa de desenvolvimento alcançado, e em função das alianças de classes possibilitadas ou necessárias para uma forma particular de capitalismo, da etapa de desenvolvimento alcançado, em função das alianças de classes possibilitadas ou necessárias para uma configuração determinada de componentes económicos. No nível da estrutura 'sociopolítica' deve-se percebê-lo como uma crise de mobilização que envolveu as classes baixas, afetando as velhas e as novas elites, assim como também as classes médias, processo análogo ao que Gramsci denomina de 'crise orgânica', expresso num nível psicossocial através de um movimento de massas que proporcionou bases para um movimento político organizado, em que. logo se transformou" (38)
A utilização posterior do conceito de populismo para explicar os regimes de Peron e Vargas ( este retorna ao poder entre 1951--1954) no pós-guerra acabou por tomar-se consensual na linguagem das ciências sociais latino-americanas. Entretanto, o caráter multiforme das realidades abrangidas pelo conceito em frases históricas e regiões do mundo tão diferenciadas (39) tem produzido um questionamento de seu uso generalizado na América Latina. Isto explica, em parte, a preferência de Lipset pelo conceito de fascismo de esquerda os proletário para explicar a natureza do peronismo.
A posição básica de Lipset é de que o fascismo seria um movimento de classe média que se manifesta contra o capitalismo, contra o socialismo, contra a grande empresa e os grandes sindicatos. Partindo da análise histórica de que as três famílias políticas principais do mundo posterior à Revolução Francesa corresponde a bases sociais diferentes (a direita se apoia em frações da burguesia; a esquerda nos operários da indústria e nos setores pobres da paysanneríe; e o centro nas classes médias), e considerando que cada uma delas possui internamente uma tendência democrática e uma tendência extremista, conclui que o fascismo é um extremismo de centro. A consequência de sua analise é que se o fascismo típico apoia-se nas classes médias onde o capitalismo e o movimento operário mais se desenvolveram, existem dois outros tipos de fascismo: um extremista de direita que se sustenta através de classe superior nos países de economia atrasada, o que explica, por exemplo, o salazarismo em Portugal; outro extremismo de esquerda, de base social preponderantemente operária, nos países em processo de desenvolvimento acelerado, o que corresponderia ao peronismo e ao varguismo.
O argumento desenvolvido por Lipset toma em consideração, essencialmente a base social do peronismo: "Como os partidos marxistas, o peronismo se apoia sobre as camadas sociais menos favorecidas - os trabalhadores das cidades e a parte mais pobre da população rural". Ao amálgama de componente contraditórios que constitui o regime peronista, tanto no plano ideológico quanto em sua base social, Lipset afirma que "se quisermos considera-lo como uma forma particular de fascismo, é preciso reconhecer de que se trata de um fascismo de esquerda que se apoia nas camadas sociais que poderiam encontrar no socialismo a saída natural dos seus rancores efrustações." (40) A analise de Lipset, que conduz ao paradoxo de considerar o nacional-socialismo na Alemanha como um extremismo de centro (o eleitorado nazista situava-se preponderantemente nas pequenas cidades e na zona rural) tem como consequência, segundo De Felice, "não considerar como verdadeiramente fascistas os partidos e os extremismos centristas e aburguesados. Todos os outros, com a única exceçâo do peronisno, se desclassificam pertinentemente, na nossa opinião, na categoria de movimentos conservadores de direita" (41)
Estas duas análises, apoiando-se em perspectivas sociológicas, ilustram a dificuldade inerente à utilização de certos conceitos, tais como fascismo e populismo, na análise da realidade latino-americana, e as fronteiras difusas entre eles. As diferenças básicas entre ambos não podem ser resolvidas no plano puramente sociológico, nem pela mera articulação mecânica entre estruturas sócioeconômicas e instância política. A dificuldade não parece menor quando, mesmo num a perspectiva marxista de análise do discurso, aceita-se como sugere Laclau, que "o nazismo constitui uma experiência populista e, como todo opopulismo das classes dominantes, teve que apelar para um conjunto de distorções ideológicas - como o racismo -, para evitar que o potencial revolucionário das interpelações populares se orientasse no sentido de seus verdadeiros objetivos". Ou como afirma em outro texto: "Socialismo não constitui o pólo oposto do fascismo", na medida em que "o fascismo é o discurso popular neutralizado pela burguesia' e o "socialismo é o discurso popular ao qual foi permitido desenvolver todo o seu potencial revolucionário." (42) Sem discutir os problemas das diferentes abordagens, pode-se, ao menos, constatar, que, tanto no plano teórico quanto nas análises empíricas da realidade latino-americana, a polarização fascismo versus populismo não é uma questão consensual na análise social e política.
Ao final dessa discussão crítica sobre a questão do fascismo na América Latina, pode-se tirar das conclusões provisórias. A primeira relativa à utilização do conceito de fascismo nas análises dos anos 70. Sem buscar novos novos argumentos na literatura comparativa do fascismo, a critica interna desenvolvida parece suficiente para excluir a hipótese do fascismo em suas diferentes qualificações (fascismo potencial, fascismo dependente ou fascismo sui generis). A Segunda, baseada na aplicação do qualificativo fascista aos regimes de Peron e Vargas, mesmo sem aprofundar a discussão em tomo da questão das relações entre fascismo e populismo, a presença de aspectos fascistas nesses regimes não justifica o uso do termo.
b) OS LIMITES DO FENÓMENO FASCISTA
A questão final que se coloca é a seguinte: existiram ou existem na América Latina movimentos políticos que possam ser chamados de autenticamente fascistas? A resposta a essa questão não parece fácil porque, para que um movimento seja denominado de fascista, não basta que tenha aspectos exteriores das organizações fascistas europeias. A reprodução do fascismo na América Latina supõe uma série de conduções que tentaremos estabelecer a partir do caso brasileiro onde, entre 1932 e 1938, se desenvolveu um importante movimento político de massa, que preenche os pré-requisitos de uma organização de tipo fascista. Parece legítimo, pois, rejeitar, de um lado, a tese da existência de regimes políticos fascistas na América Latina e, de outro, admitir, desde que preenchidas certas condições a presença limitada de movimentos de tipo fascista no contexto dos anos 30.
As análises comparativas sobre o fascismo, embora centradas sobre a experiência europeia, têm também incluído, nos últimos dez anos, referências a manifestações fascistas na América Latina da década dos 30. Essas alusões, que são mais uma informação histórica de que uma tentativa série de comparação, tendem a concordar consensualmente com relação aos limites do fenómeno. O único esforço que, numa perspectiva comparativa, inclui organizações oriundas da América do Sul, foi feito por Linz, num artigo em que desenvolve uma abordagem sociológica sobre diferentes movimentos fascistas europeus na qual insere dados sobre o Integralismo brasileiro. (43) Noutro, porém, destinado a expiorar algumas hipóteses preliminares sobre o advento de movimentos fascistas em alguns países latino-americanos, reconhece também que, na América Latina, "houve certamente, muitos outros movimentos (antiliberais, antidemocráticos, reacionários ou populistas) e, inclusive, regimes com essas características", mas que "movimentos fascistas capazes de alcançar uma base nas massas, com a organização e o estilo de seus correspondentes europeus, houve relativamente poucos." (44) Da mesma forma, a análise de Milza e Benteli admitindo que "não houve, praticamente, nenhum país sulamericano que não tenha visto nascer, entre as duas guerras mundiais, um movimento fascista, e que, na maior parte dos casos, trata-se de grupos formados por membros das colónias italianas e alemãs e de movimentos de pura imitação", conclui que "Mm único país, o Brasil, conheceu um verdadeiro fascismo de massa." (45) Outras não têm sido as conclusões de Hennessy em seu balanço bibliográfico comentado sobre Fascism and populism in Latin América (46) e de Payne em seu recente livro Fascism: Comparison and Definitíon. (47)
Estas análises, porém, embora mencionem a possibilidade de manifestações de movimentos fascistas fora da Europa, não discutem as condições históricas que explicam o surgimento desses movimentos (com exceção de Linz), nem os requisitos exigidos para que um movimento seja definido como de tipo fascista na América latina. A articulação entre esses dois níveis é uma condição necessária para justificar a presença de movimentos fascistas autênticos e para responder a duas objeções sérias. A primeira, levantada implicitamente por De Felice, de que " o fascismo foi um fenómeno europeu que se desenvolveu entre as duas guerras" e que, em consequência, "toda comparação com as situações extra-européias" (..) "é impossível, dada a diferença radical dos contextos históricos (no sentido mais amplo da expressão)." (48) A Segunda, seja por um culto purista das ideias políticas, seja por uma concepção mecanicista de seus determinantes socioeconômicos, considera que toda manifestação ideológica na América Latina se explica por mero mimetismo restrito às elites cultas, negando a possibilidade de um movimento fascista. A tentativa de resposta a essas duas objeções supõe uma discussão, tomando como referência o caso do movimento integralista em dois níveis principais: l) que condicionantes socioeconômicos, políticos e culturais explicariam o nascimentos no Brasil de um movimento fascista? 2) quais os componentes ideológicos, organizacionais ou sociológicos desse movimento que permitem classificá-lo como um caso de fascismo típico? Somente a conjugação desses fatores poderia legitimar, num contexto histórico extra-europeu, a utilização válida do conceito de fascismo e, ao mesmo tempo, contribuir para o avanço de uma análise comparativa.
A primeira dimensão que permite explicar a formação de um movimento fascista no Brasil situa-se no plano das condições históricas favoráveis. Estes fatores são indispensáveis para compreender o tipo de processo histórico ao nível da sociedade global que viabilizou a transformação do integralismo num movimento de massa. Se estas condições não existissem, a experiência fascista no Brasil teria se limitado a manifestações de pequenos grupos das camadas médias em ascensão, sensíveis ao apelo de ideologias exóticas. O elemento central de nossa explicação é de que, entre o final da primeira guerra e a Revolução de 30, o que singulariza o processo brasileiro é o fato de que se trata de uma sociedade global em transição. A expressão pode parecer muito ampla e aplicável em diversos momentos da evolução histórica do país e, por isto, exige uma melhor explicitação. Se pretender explicar as transformações políticas e ideológicas dos anos 30 pela ação dominante de variáveis infra-estruturais, o dado fundamental é a presença de um processo de crise na sociedade brasileira do após-Grande Guerra, que se manifesta desde o nível econômicosocial até o domínio cultural strícto sensu.
No nível económico, inicia-se o processo de mudança de modelo dominante: os sinais de esgotamento da economia primário-exportadora, apoiada na agricultura cafeeira, se manifestam crescentemente até a crise de 29 e, ao mesmo tempo, um processo incipiente de industrialização se acelera na década dos 30. Este processo de transição económica começa a afetar de forma significativa a composição social, provocando mudanças na estratificação social, com a expansão do operariado e a diversificação de camadas médias. Ambos os processos convergem no sentido de uma hiper-urbanização com efeitos significativos no campo político e ideológico. De um lado, a contestação do sistema político oligárquico tradicional começa, no início da década de 20, com uma sequência de rebeliões militares de oficiais subalternos (1922, 1924 e 1926), provocando a politização de setores jovens das Forças Armadas ("tenentismò"): de outro, os conflitos sociais explodem nas primeiras greves importantes desde 1918, nos primeiros centros industriais e urbanos, especialmente em São Paulo, e a tradição anarco-sindicalista do movimento operário (principalmente de origem estrangeira) vai encontrar novos canais de expressão política com a fundação do PCB em 1922 e o desenvolvimento das organizações sindicais. Embora os movimentos de rebelião militar não se articulassem diretamente com a eclosão violenta da questão social no após-guerra, a marcha legendária da Coluna Prestes, durante dois anos pelo sertão brasileiro para manter viva a chama da revolução, provocará a conscientização política de um setor militar minoritário que mais tarde fará opções políticas mais radiais (Prestes toma-se secretário-geral do PCB). A revolução de 30 que conduzirá Vargas ao poder, em decorrência de um conflito entre oligarquias estaduais divergentes, toma-se o ponto de aglutinação desse processo político, através de novas alianças das oligarquias dissidentes com o tenentismo e com as camadas médias ligadas à expansão do Estado e ao setor industrial. Este processo de transição de sociedade se manifesta, também, no plano ideológico, desde a década de 20, através do nacionalismo cultural e económico, da revolução estética ("modernismo"), da exaltação do civismo (Ligas de Defesa nacional) e da renovação católica (integrismo). Este conjunto de crises articuladas, reflexas ou autónomas (e esse é o ponto importante) foi percebido pelas elites intelectuais, pêlos dirigentes po- líticos e por amplos setores das novas camadas médias como um processo de transição onde a evolução histórica europeia não lhe era indiferente: a crise das democracias liberais, a violência da luta social e a ameaça revolucionária, e a ascensão dos movimentos fascistas. Estes dados estavam presentes na consciência política dos futuros integralistas que acreditavam num sentido da história marcado pela alternativa fascista.
Todos estes fatores favoreceram o surgimento de uma atmosfera de inquietação política, marcadamente sob a influência de ideias e movimentos autoritários pré-existentes. (49) Assim que, num contexto histórico de mudanças económicas e sociais significativas, emerge um processo de crise ideológica que está na origem do movimento integralista. Neste sentido, a hipótese de Linz de que a Ação Integralista " semelhante a outros fascismos da europa ocidental, particularmente o da Espanha, e a alguns da França e, de certa forma, o fascismo italiano, é um movimento que responde mais a 'uma crise política e cultural' do que a uma 'crise económica)) parece plausível, na medida em que capta a natureza de um processo negada por outro autor que dogmaticamente invalida a possibilidade do fascismo no Brasil dos anos 30 por se tratar de uma sociedade em fase de "capitalismo hipertardio". (50) A hipótese de sociedade em transição como quadro explicativo de uma crise ideológica que criara as condições para o surgimento de um movimento fascista de massa no Brasil supõe, entretanto, que um movimento com tais características tenha nascido no seio desse processo.
Para determinar a natureza fascista do movimento integralista ( o que poderia ser aplicável a outros movimentos latinoamericanos do mesmo tipo), tomase necessário articular-se componentes típicos do fascismo europeu: a ideologia, a base social e a organização (51) A presença combinada desses elementos, ainda que com algumas especificidades nacionais, é uma condição indispensável para avaliar o caráter fascista de um movimentos político fora da Europa.
No caso do Integralismo, a análise da ideologia foi estabelecida em diversos níveis: a) produção teórica dos ideólogos; b) publicações de propaganda e de divulgação ideológica; c) atitudes ideológicas de dirigentes e militantes; d) motivações de adesão; e) entrevistas semidiretivas. A incorporação na análise dessa diversidade de manifestações da ideologia decorre da precaução que deve ter o analista ao tentar captar o conteúdo de um discurso ideológico produzido, em grande parte, em outro contexto histórico. Além de que, em todos as manifestações políticas, o conteúdo e a percepção da mesma variam em diferentes camadas da pirâmide ideológica (a ideologia dos teóricos, dos dirigentes, dos militantes, etc.) tomava-se fundamental, como elemento de prova, a presença da ideologia nas atitudes dos membros do movimento em diferentes escalões, nas motivações de adesão e no discurso individualizado através das entrevistas em profundidade.
Os dados demonstraram que os principais temas do discurso fascista estavam presentes não somente nas obras teóricas, nas revistas de divulgação e na imprensa integralista, como se reproduziam, de forma preponderante, nos indicadores das atitudes ideológicas, nas motivações de adesão e nas entrevistas. Até mesmo um índice de uniformidade da propagação ideológica permitiu registrar níveis altamente significativos de socialização ideológica interna quando se comparavam as atitudes dos dirigentes com a dos militantes locais. Este tipo de consistência interna da ideologia, que se manteve praticamente intacta nas atitudes básicas dos integralistas após quarenta anos de interdição do movimento, confirmou empiricamente as hipóteses desenvolvidas a partir da literatura teórica sobre o fascismo europeu.
No que concerne à origem social dos militantes, um dos critérios utilizados para determinar a natureza do integralismo foi a comparação da estrutura social deste com a dos fascismo europeus. As informações obtidas junto a antigos militantes, através de pesquisa ou em documentos oficiais da AIB, permitiram uma reconstituição bastante aproximada da origem social dos integralistas. Organizando os dados disponíveis em categorias, pode-se constatar que, ao nível da direção nacional e regional, era a classe média superior (profissionais liberais e oficiais exército) que controlava o aparelho do partido. Quanto aos dirigentes e militantes locais, sua base estava constituída de duas categorias: a maioria dos aderentes provinha da classe média inferior (pequenos proprietários, empregados e funcionários), com uma relativa participação de camadas populares, constituída por trabalhadores (a maioria em pequenas e médias indústrias), de agricultores ou trabalhadores rurais (em geral em zonas de pequena propriedade) e de um certo número de artesãos. Esse perfil da composição social do Integralismo parece aproximar-se bastante do modelo europeu, especialmente do fascismo italiano e do nacional-socialismo alemão, como aliás confirma, também, a análise de Linz. (52)
O tipo de estrutura organwtiva do integralismo foi outra característica importante para definir a natureza do movimento. Não se pode dissociar, num movimento fascista, a ideologia e a organização, porque existe uma relação explícita entre a estrutura desta e o conteúdo da outra. Geralmente as organizações políticas autoritárias se estruturam hierarquicamente com o objetivo de enquadrar eficazmente seus militantes. A organização integralista, entretanto, supera esta função meramente instrumental: além da estrutura vertical e rígida, sob o controle de organismós de enquadramento e socialização ideológica, a ATB incorporou uma nova di- mensão capaz de transformar a organização na prefiguração do Estado integral.
Portanto, a organização da AIB foi não somente um meio eficaz, voltado para a ação política, mas um instrumento de elaboração e experimentação, em escala reduzida, do Estado Integralista. A estrutura da AIB, desde o chefe até os militantes de base, formava uma organização burocrática e totalitária. A burocracia da organização manifestava-se através de um complexo de órgãos, funções, papéis, comportamentos previstos minuciosamente pêlos estatutos, resoluções do chefe e rituais; o caráter totalitário, por sua vez, exprimia-se nas relações rígidas entre os órgãos de enquadramento disciplinado dos militantes (a partir das organizações da juventude até a milícia) e na submissão autoritária e fidelidade ao superiores hierárquicos.
A análise do caso brasileiro, portanto, parece responder à objeção de De Felice sobre os limites europeus do fenómeno fascista. O Integralismo consegue reproduzir os traços característicos dos movimentos fascistas europeus, mas, ao mesmo tempo, não se limita a ser uma mera imitação político-ideológica. As condições históricas da sociedade brasileira, no período entre as duas guerras mundiais, favoreceram sua implantação como movimento de massa, tomando-o um alternativa dramaticamente real ao processo político brasileiro. Esta experiência política fascista, por sua importância na época e seus efeitos sobre a evolução futura da sociedade brasileira, tomou-se provavelmente um caso isolado. Somente um esforço contínuo de pesquisa e de análise no aprofundamento da questão do fascismo na América Latina, sobretudo através de estudos monográficos (53) e sua comparação com diferentes manifestações fascistas nos países latinos, permitirá uma resposta definitiva sobre os verdadeiros limites do fenómeno.
Notas:
Texto da conferência proferida em 11 de agosto de 2000.
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15. Ibid. p. 477-478.
16. René Zavaleta Mercado. "Nota sobre Fascismo, Dictadura y Conjuntura de Disolución", Revista Mexicana de Sociologia, l, janeiro-março, 1979, p. 83-85.
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18. Ibid.p. 184-187.
19. Armando Cassigoli. "Fascismo Típico y Fascismo Atípico", Nueva Política, op. Cit. P. 175-177 e 178.
20. Marcos Kaplan. "Hacia un fascismo Latino Americano", Nueva Política, op. cit. P. 120.
21. Ibid. p. 123.
22. Ibid.p. 123, 142-143.
23. Hugo Zemelman. "Acerca dei Fascismo en América Latina", Nueva Política, op. cit. P. 193-195 e 197-202.
24. Ibid. p. 202-203 e 206.24 Ibid. p. 202-203 e 206.
25. Atilio Boron. "El Fascismo como Categoria Histórica: en torno del Problema de Las Dictaturas en América Latina", Revista Mexicana de Sociologia, 2, abril-junho, 1977, p. 482.
26. Ibid. op. 483, 489-490, 499-500.
27. Ibid.p.509-516.
28. Ibid.p.518 e 521.
29. Alain Rouquié, org.. Les Partis Militaires au Brésil. Paris : Presses de Ia FNSP, 1980, P. 12.
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40. S. M. Lipset, op. cit. p. 189 e 192.
41. Citado por Renzo De Felice. Clefs pour comprendre lefascísme. P,, cit., p. 142.
42. Ernesto Laclau. Política e Ideologia na Teroia Marxista (Capitalismo, Fascismo e Populismo), Rio: Paz e Terra, 1978, p. 180 e 147
43. Juan Linz. "Some Notes Toward a Comparative Study of Fascism in Sociological Historical Perspective", Walter Laqueur, ed., Fascism: a Reader's Guide, op. cit.
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45. Pierre Milza e Marianne Benteli, op. cif, p. 297.
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48. Renzo De Felice. Clefs pour comprendre lefascisme, op. cit., p. 264.
49. Ver Bolívar Lamounier. "Formação de um Pensamento Autoritário na Primeira República: uma interpretação." In : História Geral da Civilização Brasileira. III, Brasil Republicano, T. 2. São Paulo : Difel, 1977; Wanderiey Guilherme dos Santos. "Paradigma e História: a ordem burguesa na imaginação social brasileira". In : Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo : Duas Cidades, 1978; Jarbas Medeiros. Ideologia Autoritária no Brasil, 1930-1945. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, 1978.
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51. Ver Hélgio Trindade. "IntegralismoTeoria e Práxis política nos anos 30". In : História Geral da Civilização Brasileira. Brasil Republicano, T. 3, São Paulo : Difel, 1981, p. 297-335; Hélgio Trindade. Integralismo. Op. cif, p. 129-277.
52. Juan Linz. "Some Notes toward a Comparative Study...", op. cit., p. 59-87
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