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Luis Milman *
Nos últimos anos da década 70, percebia-se que os movimentos de extremadireita voltavam a ganhar espaço no cenário político europeu. O fenómeno, até certo ponto inesperado, parecia estar diretamente associado à progressiva erosão do Império Soviético. Os analistas mais atentos arrolavam, como fator determinante de uma virada à direita da política mundial, a aceitação da opinião pública das soluções conservadoras representadas por Reagan, nos Estados Unidos, Tatcher, na Inglaterra e Kohl, na Alemanha.
Sabemos como tal hegemonia consolidou-se nos países do Ocidente, ao mesmo tempo que entrava em colapso, devido à regressão económica e à opressão interna, o socialismo real da URSS. O panorama político mundial, nos anos 80, alterava-se profundamente com relação ao período da Guerra Fria. A social-democracia europeia foi progressivamente sendo batida em eleições e, desta forma, percebia-se um crescimento da rejeição das suas soluções económicas distributivas e intervencionistas, que terminaram sendo acusadas de excessivamente onerosas para os governos dos países ricos. O clímax desse retomo ao conservadorismo político e do avanço da liberalização económica nas democracias ocidentais foi acompanhado, por um lado, da ruína definitiva da União Soviética e, por outro, da reunificação alemã.
As demandas de emancipação dos países da Europa Oriental, decorrentes desse processo, trouxeram mais uma vez à tona pretensões nacionalistas de autodeterminação. Países como a lugoslávia e a Tcheco-eslováquia, para citar apenas dois, desapareceram devido ao retomo de nacionalismos exacerbados e afirmações de identidade étnico-cultural, que permaneceram ativas, embora contidas, durante o período de hegemonia soviética. No Terceiro Mundo, a única força política capaz de mobilizar descontentamentos anti-imperialistas passou a ser o integrismo de extração religiosa, expresso na Revolução Iraniana e no renascimento do fundamentalismo como afirmação ideológica da resistência ao novo bloco hegemónico mundial liderado pêlos Estados Unidos.
Na história ocidental do último século, o espectro político de esquerda deparou-se com a oposição ou de uma direita democrática ou de uma direita de tipo corporativista, salvacionista ou ultranacionalista que, entre os anos 30 e 40, chegou ao poder em praticamente todos os países da Europa Ocidental e Oriental, exceção feita à Inglaterra, França e Rússia. Hoje, observa-se uma nova expressão dessa disputa, com a especificidade de que, no confronto, não mais se apresenta a opção pelo socialismo real. Sem tal opção, a esquerda e a direita democráticas da Europa estão sendo desafiadas pelo ressurgimento de correntes ultranacionalistas, algumas das quais voltam a fazer, abertamente, uso da pregação xenofóbica e anti-semita.
Os casos da França e, sobretudo da Áustria, que chamam imediatamente a atenção, não são os únicos. Partidos de perfil nacional-socialista têm marcado presença constante em eleições na Alemanha e Bélgica. Não há sequer um país da Europa Ocidental onde não haja partidos de ultradireita em atividade. Na Itália, neofascistas do Sul e separatistas do Norte chegaram a fazer parte de uma coalizão de governo populista, há alguns anos. No Leste europeu, antigas rivalidades nacionais e étnicas deflagraram conflitos como o da ex-lugoslávia. Na virada do século XXI, aquilo que seria descartado como inconcebível por um analista político dos anos 60 - o ressurgimento de uma ultradireita organizada e politicamente expressiva na Europa - tomou-se um fato que causa crescente inquietação.
Um projeto de discussão voltado para tal temática, portanto, deve levar em conta a complexidade dos processos histórico-políticos moderno e contemporâneo. A análise do renascimento do extremismo, da sua operacionalidade e de sua configuração ideológica, não é uma tarefa das mais simples, principalmente se considerarmos que ainda sofremos os sucessivos impactos das incertezas e das crises decorrentes do que se tem chamado, de um modo um tanto simplificado, de reordenação global Pós-Guerra Fria.
Alguns padrões clássicos de análise sóciopolítica e histórica estão sendo reavaliados em função de fenómenos que apresentam inequívoca singularidade, como o extremismo xenófobo da Europa Ocidental, o nacionalismo do Leste europeu, a persistência do anti-semitismo e a força do pensamento religioso na Ásia e mesmo na América, todos fenómenos que constituem parte importante da geografia político-ideológica do mundo atual.
Ao organizarmos o Simpósio Internacional sobre Neonazismo, Revisionismo e Extremismo Político, tivemos a intenção de contribuir de maneira substantiva para o debate e a compreensão de alguns dos pontos-chave do ressurgimento de sistemas de pensamento político regressivos. Esse livro reúne os artigos que serviram de base para as conferências proferidas durante o Simpósio realizado entre 7 e 11 de agosto de 2000. O Simpósio foi organizado pelo Instituto Latino Americano de Estudos Avançados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, programas de pós-graduação em Comunicação e Informação e em História (UFRGS) e pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, com o apoio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e Federação Israelita do RS. O evento discutiu, de modo intensivo, alguns dos elementos característicos destes sistemas em sua conformação atual, a exemplo da questão revisionista ou da negação do Holocausto, um dos modos de expressão recorrentes do discurso neonazista.
Ao lado desse tema, que tem mobilizado de modo crescente reflexões políticas e históricas na Europa, Estados Unidos e Israel, o Simpósio analisou as características daquilo que genericamente chamamos de extrema-direita, em sua configuração do Pós-Guerra, penetrando em temas que constituem a base para a compreensão dos movimentos e organizações partidárias neofascistas e neonazistas. Promoveu, ainda, um aprofundado estudo sobre os instrumentos ideológicos do racismo, sobre a sua pseudocientificidade e a sua macabra instrumentali- zação pela corporação médica no período do III Reich. Além disso, incursionou pela ideia do nazismo como forma de colonialismo interno, distinto do colonialismo clássico, bem como pela história dos movimentos nazifascistas na América Latina e no Brasil. O livro que apresentamos aqui reúne os trabalhos de Dietfrid Krause-Vilmar, Paulo Vizentini, Roney Cytrynowicz, luís Dario Ribeiro, Luís Milman, Hélgio Trindade, Rene Gertz, Voltaire Schilling e Jair Krischke, apresentados no Simpósio Internacional. O livro é estruturado em duas partes, delimitadas por proximidade temática. Reunidas, elas formam, de modo complementar, um painel acurado sobre as questões centrais discutidas no Simpósio.
Na Primeira Parte, temos a análise do professor Paulo Vizentini (UFRGS), sobre a extrema-direita fascista e nazista do Pós-Guerra na Europa, na qual nos é apresentado um panorama detalhado da rearticulação dos setores extremistas europeus depois da queda do Eixo, assim como da ideologia que sustenta os partidos ultranacionalistas e xenófobos da atualidade. Este tema reaparece de forma mais pontual na análise histórica do Partido da Liberdade austríaco, feita pêlos professores Vizentini e luís Dario Ribeiro (UFRGS). O professor Hélgio Trindade (UFRGS) oferece-nos uma abordagem retrospectiva e conceituai da extrema-direita na América Latina, que é central para a compreensão dos elementos que ordenam a mentalidade de direita que se constituiu em nosso continente. Também este é o objeto de análise do professor Rene Gertz (UFRGS/PUC), que, em sua abordagem, analisa elementos indispensáveis para a compreensão do Integralismo filogermânico no Brasil.
Na Segunda Parte, o professor Voltaire Schilling apresenta um penetrante estudo sobre a dinâmica e a aplicação da ideologia racial no regime de Hitier, bem como da sua instrumentalização técnica. O estudo discute o racismo nazista em seus aspectos conceituais e elucida as bases das práticas de aperfeiçoamento racial (eugenia) e da eliminação de inaptos (eutanásia), que derivaram para a operacionalidade do extermínio em massa dos judeus. O tema da ideologia política nacional-socialista é retomado pelo professor luís Dario Ribeiro, numa perspectiva analítica original. luís Dario apresenta o nacional-socialismo como uma modalidade de colonialismo social, exercido de modo a cumprir uma função análoga ao colonialismo clássico, que é orientado para fora do território nacional.
O tema da negação do Holocausto, que recrudesce como instrumento da retomada de visões políticas segregacionistas, é discutido pêlos professores KrauseVilmar (Universidade de Kassel) e luís Milman (UFRGS). Krause-Vilmar expõe as bases dos argumentos chamados revisionistas, identificando os pontos de uma discurso mistificatório e apontando, com precisão e rigor, os artifícios próprios de farsa negacionista que se pretende histórica. Sob um enfoque distinto, Luís Milman (UFRGS) refaz a trajetória que levou o argumento negacionista da uma fase de incubação para a sua situação atual, de consolidação como arma de propaganda política centrada no anti-semitismo.
Já a questão do Holocausto, que constitui o pano de fundo para a compreensão do revisionismo, é analisada, em sua singularidade, significação e apreensão histórico-política, no artigo do professor Roney Cytrynowicz. Completa esse bloco o texto da palestra proferida pelo presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), Jair Krischke, na qual são expostas passagens decisivas da sua militância na denúncia e combate às atrocidades cometidas pelas ditaduras do Cone Sul, que, em muitos momentos, foram influenciadas por ideologias e práticas nazistas. Krischke, além disso, relata detalhes da luta pioneira do Movimento de Justiça e Direitos Humanos contra a Editora Revisão, a única no Brasil a publicar livros que negam a ocorrência do Holocausto, além de dedicarse inteiramente à propaganda do anti-semitismo.
Pretendemos, com a publicação desse livro, oferecer à opinião pública instrumentos que venham a contribuir para a compreensão do extremismo e dos seus alegados argumentos. Temos certeza de que somente a análise rigorosa desses fenómenos, associada ao fortalecimento de nossas convicções e compromissos com a democracia e o humanismo, são capazes de fazer a necessária denúncia de sistemas de crenças anti-democráticas, que se alicerçam no ódio, no preconceito e no elogio da violência.
* Organizador e Coordenador do Simpósio Internacional.