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A chegada de Jean Louis Weil ao Brasil teve o grande mérito de comprovar o interesse que as ocorrências de Porto Alegre despertavam, a nível das organizações internacionais engajadas na defesa dos direitos do Homem.
O jurista vinha credenciado pelo Secretariado Internacional de Juristas pela Anistia no Uruguai-SIJAU, pela Federação Internacional dos Direitos do Homem e pelo Movimento Internacional de Juristas Católicos. Trazia também um oficio do Presidente da Ordem dos Advogados de Paris ao Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Entre os objetivos de sua visita estavam encontros com autoridades governamentais, com o Cardeal D. Vicente Scherer e com o Cônsul da Itália, Sr. Ilário Dinalli.
Aqui chegando, pediu ao Luís Cláudio e a mim um relatório sobre o caso, para que, conhecedor do assunto, pudesse determinar melhor sua posição e sua linha de açao. Esse material serviria também como subsídio para elaboração de denúncia a ser encaminhado à Comissão dos Direitos Humanos da ONU.
Sua primeira visita oficial teve como alvo o Governador do Estado em exercício, Sr. Amaral de Souza, que deixou claro estar recebendo a comissão da Ordem dos Advogados do Brasil, e não especificamente o emissário francês. Dizendo que estava substituindo o Governador Guazelli por vinte e quatro horas, mostrou-se totalmente refratário, durante o encontro, justificando que não dispunha de "competência" para imiscuir-se no assunto. Com relação ao seqüestro, manifestou-se pela "competência" da Policia Federal, reafirmando a inexistência de violação aos direitos humanos no Brasil. O final da entrevista foi marcado pela melancólica sensação de sua inocuidade. E, pela repetida alegação de "falta de competência", pela insistente reafirmação de "incompetência", pôde ser classificada de frustrante.
Após, foram feitos os encontros com D. Vicente e Sr. Ilário Dinalli. A ambos Weil esclareceu os dois principais objetivos de sua viagem ao Brasil e de sua missão no Estado. O primeiro era colher elementos para compará-los com outros seqüestros praticados por comandos uruguaios nos territórios argentino e paraguaio. O segundo era de sensibilizar o Governo e as instituições para o grave problema do desaparecimento de pessoas, especialmente de crianças, no Cone Sul da América.
Na entrevista coletiva que Weil concedeu na sala de recepção do hotel Plaza São Rafael, destacaram-se duas afirmações.
Com referência à tese da polícia brasileira, segundo a qual. acrescida da versão uruguaia, só teria havido desaparecimento e posterior entrada clandestina, Weil destacou, com muita lucidez, que:
-- Não há uma testemunha que tenha visto Lilian e seus dois filhos passarem clandestinamente a fronteira e não lia nenhum desmentido oficial sobre a honestidade dos testemunhos dos quais falamos.
Em segundo lugar, afirmou:
-- Não se pode pensar que prováveis membros de uma organização internacional de terroristas, como diz o comunicado, pudessem, em dois carros, atravessar tranquilamente a fronteira, tendo como arma duas inofensivas crianças. Eu lamento que as investigações realizadas em Porto Alegre pela Policia Federal não tenham dado a menor importância a esse tipo de absurdo.
Após a entrevista, fomos recebidos em palácio pelo Governador Guazelli. Estávamos acompanhados dos conselheiros da OAB, advogados Mariano Beck, Otávio Caruso da Roclia e Walter Tschiedel.
Embora demonstrando bastante preocupação, o que denunciava seu semblante carregado, Guazelli nos atendeu cavalheirescamente. Relatounos que, numa sindicância preliminar, a Secretaria de Segurança negava qualquer participação do Estado nas ocorrências. Entretanto, era necessário uma investigação mais profunda, dada a importância das denúncias de Camilo, e, que, finalmente, era intenção do Governo deixar tudo bem claro, pois nada tinha a esconder da imprensa. Desta vez não se registraram os constrangimentos nem as frustrações que li aviam caracterizado o encontro do dia anterior, com o Vice-Governador. Guazelli era um verdadeiro magistrado e cumpria o protocolo com a nobreza que lhe era peculiar. Dependendo da conotação que se empresta à palavra amigo, eu inclusive me considerava amigo do Governador, desde os tempos da Assembleia Legislativa, amizade que até hoje prezo.
Encerrado o encontro, que se realizou na ala residencial do palácio -- era domingo --, levantamo-nos todos para sair. Guazelli, no entanto, nos acompanhou pelo corredor que leva até o setor administrativo. Weil e os demais iam na frente, seguidos pelo Governador e por mim. Foi então que não me contive: passei o braço sobre seu ombro e segredei-lhe:
-- Mas que foi seqüestro, foi mesmo.
Guazelli sorriu e respondeu:
-- Para que vejas . . . quando os nomes das pessoas são mais importantes que os fatos.
Eu não esperava aquela resposta. Teve o mágico dom de afastar todas as dúvidas que ainda poderiam pairar em minhas convicções. Senti que ele estava inflamado e disposto a denunciar a trama, sendo possivelmente tolhido pelas contingências da política interna do Estado.
Do palácio, dirigimo-nos diretamente ao aeroporto. Durante o trajeto, através da Letânia, nossa intérprete, relatei a Weil o rápido diálogo que tivera com Guazelli.
Enquanto fazia o relato, comecei a dar-me conta de que objetiva- mente estava criada a primeira condição para começar ajuntar os fatos às personagens e, dessa maneira, ir formando, a par das circunstâncias já conhecidas, um sólido arcabouço que viesse a deslindar aquele intrincado quebra-cabeças.
A partir daquele momento, Pedro Seelig passava a incorporar um personagem real que se movimentava com desenvoltura no contexto de uma história cujas peças íamos aos poucos montando.
No Rio de Janeiro, antes de embarcar para Paris, Weil conversou pela última vez com a imprensa. Eu pressentira que suas palavras seriam duras, e de fato o foram.
O advogado francês, numa entrevista a que os jornais deram ampla divulgação, fez várias denúncias. Começou acusando a organização uruguaia pertencente às Forças Conjuntas, denominada OCOA -- Organismo Coordenador de Operações Anti-Subversivas, de ser responsável pelo seqüestro havido em Porto Alegre. Indigitou o Gen. Amauri Pranlt e o Cel. José Gavazzo, nomeando-os como chefes da operação. Assinalou que ela, do ponto de vista técnico, não diferia de centenas de outras realizadas na Argentina, e que os dois militares figuravam em todas. Classificou o desaparecimento como fato extremamente grave e lamentou que estivéssemos comemorando o trigésimo aniversário da Declaração dos Direitos do Homem com o mascaramento de um seqüestro que enlutava dois países. Acrescentou que o depoimento de Luís Cláudio, dada sua precisão, calma e honestidade intelectual, conferia confiabilidade aos fatos, em cada detalhe conhecido. Concluiu acusando o DOPS como órgão executor do apresamento e o Delegado Pedro Seelig como seu chefe operacional.
O peso de tais denúncias, quando publicadas, era de aturdir. Cheguei a imaginar que, no dia seguinte, Seelig replicasse de modo ostensivo e agressivo, numa reaçao violenta. Qual não foi meu espanto quando o Delegado revelou entender tudo como ónus de sua atividade e da função que desempenhava, justificando que tais acusações ocorriam "por ter (ele) acabado com o terrorismo e a subversão".
Embora as declarações do Secretário de Segurança não concordassem que a subversão realmente fora extinta, era de pasmar a valentia indiscutível do Delegado. Certamente porque o primeiro terrorista a tombar sob seu guante fora o menino Carlos Alberto, que sucumbira às torturas e às sevícias do órgão de inteligência chefiado por ele.
Essa falta de reaçao praticamente deixava comprovada a fraqueza que já estava minando o primeiro policial efetivamente acusado. Fiquei tranquilo e confiante, partindo do seguinte raciocínio "se não virou a mesa é porque é culpado mesmo".
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